terça-feira, junho 20, 2006

Grito

Era menino, porém, não como tantos outros, com toda aquela magia e força de viver que a infância transporta.
Não, ele não.
Menino de cabelos claros e pele negra, queimada do sol, queimada da vida, queimada da fogueira de sentimentos que se cruzavam à sua volta.
Menino que nascera no seio de uma família triste e crescera no berço do desconsolo e da falta de amor, menino de olhos repletos dessa luz e da inquietação do espírito que não vive, sobrevive, da alma que não voa , apenas plana.
Desprovido de sentimentos ele caminhou, fez-se herói pela estrada do mundo, sofrendo a cada dia, escrevendo no caderno da vida as duras páginas do seu destino.
Até aquele dia, ao momento em que sorri e olhando para a minha garrafa de água lhe perguntei: Se esta garrafa fosse uma varinha mágica que transformasse todos os teus sonhos em realidade, que pedirias?
No ar pairou a magia dos meninos, daqueles que teriam pedido mundos...bonecos, carrinhos, cromos de jogadores de futebol, berlindes...mas ele não, ele, fazendo face ao meu sorriso repleto de alegria disse secamente: A morte.
Pedira-me a morte, e eu olhava-o com comoção, apetecia-me abraçá-lo, dizer-lhe que ficaria tudo bem, que o levaria para minha casa e juntos construiríamos um novo mundo para si, um espaço onde só a vida pudesse permanecer, uma alegria em que a tristeza da morte fosse meramente passageira.
Mas, permaneci calada, prisioneira de mim mesma, acorrentada ao sentimento de pena, rancor, ódio e raiva. Mas porquê? Porquê? Porque não crescera aquele menino como crescem tantos outros, no seio de uma família feliz, acarinhado por todos, amado , respeitado, educado pelas duras leis da vida...Porquê? Porque me pedia ele a morte com toda uma vida repleta de sonhos por viver?
Ou será que nesta vida insuportável a morte seria o alívio para todo o sofrimento? Não sei.
Mas ele pediu a morte, um menino de tenra idade pediu o final da vida ainda no seu início.
Apeteceu-me gritar ao mundo, gritar amargamente com a voz daquele menino, gritar ao “Papá” e à “Mamã” que há um filho para criar, uma semente a crescer no jardim da vida, uma semente na qual é preciso fomentar alegria, carinho, orgulho, uma semente forte que um dia será o tronco da árvore do futuro.
E porque não crescera ele como todas as sementinhas do jardim da vida? Porque houve ódio, incompreensão, desprezo, houve alguém que trocou o próprio fruto que gerou pelo desejo de amar e ser amada, alguém que preferiu sorrir ao invés de ver sorrir aqueles que são grande parte de si, alguém que enquando deveria ter-lhe passado a mão pela cabeça e dizer-lhe que ficaria tudo bem, vagueava perdida e vagabunda pelas estradas errantes da vida.
E agora, ali estava o fruto da dor, da dor que mata e fere os corações dos inocentes, e esse fruto era o menino de pele escura e olhos profundos, o menino que perante tanto sonho desejou apenas morrer. Ouviram? Morrer.

Isa Mestre

sexta-feira, junho 09, 2006

Ninguém

Já não há nomes nesta nossa terra gasta do tempo. Agora apenas a flauta a tocar canções, as mesmas canções que sem precisar de palavras dizem tudo o que há para dizer. Apenas a flauta para me anunciar que ainda estás aí, que o meu vento ainda é o tempo e que o meu olhar ainda é o arco-iris do teu frágil corpo.
Mas também eu já não tenho nome, está gasto...do tempo, do uso, do tanto chamar pelos corredores infinitos da vida, gasto como as palavras, inútil como trapos velhos arruínados pelo tempo.
Por isso, se me quiseres chamar, chama-me com tudo aquilo que tens dentro desse peito, ouvir-te-ei. Não precisamos das palavras que nos definem, que nos rotulam, que nos identificam, por que nós somos a essência, o perfume, o sentir que transportamos connosco.
Por isso, ainda que eu seja ninguém, chama-me, chama-me como se chamasses o tempo, a vida ou a felicidade.
Perdémos os nomes pela rua...Sim, eu sei que os perdémos mas não deixámos de ser quem somos, de amar, de viver... E hoje não faria diferente daquela noite, hoje, deixá-los-ia exactamente onde ficaram...no tempo que os levou pelo imenso céu da vida.
Não chamas por mim. mas ouço-te, do fundo da montanha do meu ser é a tua voz que ecoa nos vales da minha solidão, nas planícies douradas da saudade. È a tua voz que me chama, e eu vou. Não conheço os caminhos, perco-me, torno-me vagabunda e entrego-me ao mundo, mas vou, sigo a tua voz e vou onde ela me levar.
Chamam-me. Esqueço. Quem sou eu? Quem julgaste que eu era? Sou pena levada pelo vento, sou sorriso no teu rosto, sou poesia dentro de ti, sou luz na tua imensa escuridão, sou.
Sou apenas eu, sem um nome, sem um destino, sem uma vida. Sou. Será que isso não basta? Houve tantos que nem souberam ser, que hoje entendo que há mundo dentro de mim, há avenidas iluminadas e luzes ao final da estrada, há algo que me mantêm viva e me afasta da loucura desses dias que te consomem.
Não preciso de nome, cresci naquilo que sou, com os erros, com as loucuras, também com as escolhas acertadas pela vida fora. Talvez outros digam que consegui ser alguém, mas eu hei-de ser sempre apenas a menina que baila com os sonhos, que sorri, que também chora... E quando me perguntares o meu nome, hei-de permanecer no silêncio, o silêncio de quem não tem nome, o silêncio que te dirá quem sou.
Ninguém.
Quem sabe seja isso mesmo.

Isa Mestre

sexta-feira, junho 02, 2006

Alma Nua

Talvez tivesses razão... Perdi a alma, perdi a roupa da alma que me vestia de sentimentos e me deixava tão nua perante o teu olhar.
Na vida é assim, perdemos tudo, perdemos os abraços, os beijos, o carinho, o amor, perdemos o ódio e a revolta, perdemos, perdemos...E tu sabes que perdemos.
Porém, hoje sigo nua pela estrada como uma vagabunda, não tenho roupas nem amor, não te tenho a ti, afinal apenas isto diria tudo.
Caminho rumo à vida, aquela que não escolhi, a que tu me indicaste com o dedinho frágil da tua mão trémula e eu simplesmente segui, confiante, decidida, apenas tua. Como costumavas dizer: Para sempre tua.
E perdi o rumo da minha própria vida...anulei as minhas escolhas para ceder às tuas, odiei o outrora amado, sorri ao invés de chorar, amei-te, amei-te e morri.
Morri no fundo do meu ser, despi a minha alma e deixei-a abandonada no cais das nossas vidas, embarquei no teu navio que prometia mundos e no final não me levou além do que já conhecia.
Sonhei coisas bonitas, como sonham as meninas, porque a teu lado eu seria eternamente uma menina.
Os nossos caminhos distanciaram-se, dissémos um ao outro que o amor morreu e ambos baixámos as nossas cabeças por sabermos que isso nunca seria possível.
Mas eu fui, eu fui e tu foste. Fomos aos nossos mundos, descobrimos a essência da vida, tocámos suavemente a liberdade e ganhámos asas de seda para voar no plano infinito dos nossos brilhantes olhos.
Mas, hoje, sozinha desço e subo a avenida, a nossa avenida. Sozinha, como na primeira vez, quando nos conhecemos, quando me disseste o teu nome que nunca mais esqueci. Continuo perdida, com asas, mas perdida por não saber para onde voar, porque a minha alma já não voa, plana.
Diz-me que nunca mais voltas, então dir-te-ei que venhas esta noite, que aqueças o meu coração com os sentimentos que te atravessam, perdir-te-ei que me vistas a alma. Quando vens? Vens?
Traz a última réstia de sol do dia para a escuridão da minha noite, traz o calor do teu quarto para as minhas noites frias e vazias, traz a alegria do teu peito e enche a minha casa, pinta as paredes de luz porque elas só já sabem chorar.
Por fim, traz sentimentos, porque talvez eu os tenha perdido com a dureza da vida.
Quem sabe se ainda será possível sonhar neste labirinto perdido de sonhos? Eu sei e tu sabes, por isso, vem.
Vem com aquilo que és, com o que transportas para o palco da vida, vem e não digas mais nada, sorri apenas.
O teu sorriso será o renascer, será abrigo para as tempestades e roupa para a alma nua. Ouviste? Nua.

Isa Mestre