terça-feira, julho 25, 2006

Rosmaninho para ti

Eu ainda me lembro...Dizias que eu esqueceria, mas, hoje, passados tantos anos, eu ainda me lembro.
Ainda me lembro do teu rosto envelhecido debruçado sobre o verde replandecente do campo, o contraste da luz dos teus olhos com as ervas daninhas, o reflexo do teu sorriso no mais puro cantinho do céu.
Levavas-me pela mão, a tua mão calejada do trabalho, manchada da velhice, a mão experiente que conduzia na perfeição a minha meninice imatura.
Recordo-me que queria correr, e tu, já menos hábil, falavas-me das tuas pernas, das tuas frágeis pernas já incapazes de acompanhar o meu ritmo louco de menina que anseia descobrir o mundo a cada passo. Mas, lá ias atrás de mim e sempre que eu corria, lá estavas tu atrás de mim para me amparar as quedas.
O caminho parecia sempre tão longo para as tuas pernas cansadas de tanto percorrer o caminho da vida, mas para mim era sempre mais um passeio, uma descoberta, um mistério, um sonho.
Eu ainda me lembro...dos teus olhos cintilantes, do orgulho com que me olhavas, do carinho com que me aconchegavas junto do teu seio vivido. Eu ainda não esqueci que íamos junto da ribeira apanhar rosmaninho e erva ursa para colocar na fogueira.
A fogueira dos nossos sentimentos, aquela que saltei tantas vezes desafiando o fogo do amor que nos unia, a fogueira que anos mais tarde me queimou, que ainda me queima.
As tuas mãos sempre colheram o melhor rosmaninho, o mais colorido, o mais perfumado, aquele que encheria as minhas mãos da pureza que desejavas para mim.
Naqueles momentos sabia que me amavas, mais do que qualquer palavra, mais do que qualquer bilhete deixado ao acaso pela rua, eu sabia que me amavas por aquilo que era. Como se amam aqueles que são do nosso sangue, como se amam os filhos, amaste-me.
Depois de colhermos rosmanhinho e erva ursa, a fogueira da vida queimou-me os sentimentos, e hoje são apenas as minhas mãos que, por entre as ervinhas, procuram o rosmaninho mais perfumado, belo e puro para colocar junto da tua sepultura.
Recordo a tua voz, os conselhos, a mão carregada de sonhos, como se em cada pétala das flores que colhesses encontrasses um novo mundo a nascer dentro deste mesmo mundo.
Sabes...nunca mais apanhei erva ursa, nunca mais colhi rosmaninho para saltar a fogueira, nunca mais comi os bolinhos que só tu sabias fazer. Não, nunca mais... Porque há coisas que nunca mudam, porque há coisas que quando se perdem não voltam mais, ficam aqui, dentro do coração, onde tu também estás.
Todos os dias te vejo, ainda a apanhar o rosmaninho dos velhos tempos, aquele que parecia sempre transportar consigo o perfume da perfeição, da plenitude da minha infância onde não havia espinhos, não havia espadas, não havia punhais de dor inseridos profundamente na minha pele.
Não, não havia. Até partires o mundo pareceu-me perfeito.
Até ao último dia em que colhemos rosmaninho e erva ursa eu acreditei poder saltar a fogueira contigo. Hoje não, sei que por mais que o deseje, apenas poderei saltá-la sozinha.


Isa Mestre

terça-feira, julho 18, 2006

Sonhos Teus

Eu vim, naquela noite fria eu vim e tu ficaste.
Ficaste para montar as tendas em que dormiríamos nessa noite, ficaste para sonhar mais um pouco porque a mim o sono da escuridão já me cerrava os olhos por completo, ficaste para imaginar que terias filhos e construirias mundos ao lado de outra pessoa, ficaste para dizer os nomes dos garotos antes de adormeceres...
Mas eu não mais estaria, não voltarias a imaginar que sou essa pessoa pela qual esperaste tantos anos. Não o faças, porque eu não sou, não sou nem quero ser.
Não te disse adeus. Tu bem sabes como odeio despedidas...Afinal, para quê dizer-te adeus se amanhã seguirás os meus passos e trarás os teus sonhos para junto dos meus? Se amanhã quererás abraçar-me e dizer-me que vamos ter muitos filhos e uma casa grande para acolhê-los a todos? Eu sentir-me-ei pequeno outra vez, porque as minhas mãos estão vazias e tu insistes em enche-las com sonhos que não são meus, com vidas que nunca vivi, com alegrias que não existem no interior da minha rudeza.
Não quero magoar-te, afinal ainda és o fruto verde da àrvore madura e cansada do tempo, ainda és o amanhecer quando o pôr-do-sol já se estende sobre os meus horizontes longínquos.
Crescerás, habituar-te-ás a ver-me partir , a ver-me cobarde e incapaz de dizer-te que os teus sonhos não são os mesmos que os meus e que a vida que construiste nunca foi o alicerce que imaginei na minha casa do futuro.
Não te digo nada, porque como o meu pai dizia, o silêncio diz tudo aquilo que as palavras se revelam incapazes de expressar.
Por isso, quero que sigas em frente sem olhar para trás, sem imaginar a minha imagem a partir da praia da tua vida, sem as ondas do meu corpo a bailar sobre o teu, segue e não me procures, mas, por favor, também não me esqueças.
Pensa apenas que fui um episódio da tua vida, como nas novelas, como nos filmes em que acaba sempre tudo bem. Vem, finge que pões a cassete da tua vida e recorda-me, vee-me partir e pergunta-me porque vou, para onde vou, que mal fizeste. Vem, pergunta! Pergunta que eu permanecerei calado apenas para não te magoar, para não tolher da terra essas tuas raízes profundas e carregadas de vida.
Matar-te-ia se te retirasse os sonhos , por isso, prefiro morrer...sozinho, perdido, apenas com a tua imagem no pensamento.
Não sonharei que teremos muitos filhos, nem casas, nem luxo, nem sequer imaginarei ter-te a meu lado para o resto da vida, porque por agora bastar-me-ia ter-te aqui, no deserto de mim, onde não há sonhos, não há ambições, não há lutas...onde só existes tu, tu e mais ninguém.
Se vens para o meu mundo, deixa os sonhos do lado de fora da porta, tal como um saco de compras que repousa sobre a tapete da entrada, deixa-os! Porque os sonhos, tal como os sacos de compras são pesados, são demasiado pesados para transportá-los sempre comigo.

Isa Mestre

terça-feira, julho 04, 2006

Levo-te na alma

Eu vou, com asas de sonho, eu vou para longe.
Mas levo as nossas recordações comigo, levo a tua fotografia na minha carteira e o teu sorriso no bolso. Assim será mais fácil sorrir-te, como se nesta folha de papel fosses tu e não apenas o progresso do mundo espelhado na fotografia que trago comigo.
Levo-te, como nas manhãs em que caminhei solitária para o trabalho, sem ti, sem carinho, sem saber onde dormiste nem por que ruas vagueaste.
Só queria que me acordasses quando chegasses a casa, nem que fosse para dizer que estava tudo bem, para depositar um beijo nas minhas faces ainda coradas pelo calor eterno da almofada.
Mas tu não vieste. Nessa noite não vieste.
O nosso filho adormeceu com as minhas histórias, com a minha voz trémula de quem tenta disfarçar a dor e encontrar caminhos no deserto da solidão. E ele perguntou por ti...eu sorri-lhe timidamente e julgando enganá-lo, disse-lhe apenas: Vamos, querido, vai lavar os dentes, já é tarde.
E ele foi. Não voltou a perguntar pelo “papá”, pelo homem que se tornara um desconhecido no seio da sua própria família.
Quantas vezes me perguntara eu o mesmo que o nosso filho, meu amor....quantas?
Por onde andaste? Por onde andaste nas noites frias de Inverno? Por onde andaste quando o teu filho chamou por ti? Por onde? Por onde?
Não sei.
E agora ainda ouves a sua voz? Agora que cresceu, que se fez homem e construiu com as suas mãos os caminhos que se estendem diante do seu olhar.
Mas, hoje, ainda te chama. “Papá, papá....” , na sua voz de homenzinho, e chora timidamente na almofada, finge não sentir aquilo que ambos transportamos no peito: a dor.
A dor de nunca mais poder tocar-te, ouvir-te, sentir-te apertar-nos contra o teu peito.
Nessa noite tu não vieste, tu nunca mais vieste.
E eu não soube dizer-lhe onde estavas, para onde ias, porque não voltavas...não soube. Porque por vezes as mães não sabem tudo.
A vida respondeu-lhe...com o tempo, com o apaziguar da dor, com a saudade.
Sim, ainda hoje a vida sabe dizer-lhe onde estás.
E ele olha-me timidamente, aponta para o céu e sorri, como se ainda estivesses no cimo do nosso telhado a concertar as telhas.
Um dia havemos de escrever a tua história na areia da praia, a água virá e apagará todos os nomes, mas ficará a marca dos nossos dedinhos no coração do mundo, tal como ficaste em nós.
Amor, ainda espero que venhas, que me acordes e me digas que a noite foi terrível, ainda espero que me prometas que no dia seguinte não preciso esperar por ti, porque já lá estarás quando chamar pelo teu nome.
Espero mas não vens, sei que nunca mais vens.
Como naquela noite, como quando o teu corpo esqueceu a vida e sonhou para além dos nossos horizontes...quando eu não sabia onde estavas e morrias afinal sem um adeus, sem um “amo-te” que ficasse para sempre no meu olhar de menina.
Por isso, hoje eu vou, levo o nosso menino pela mão e vou em busca dos sonhos que perdemos quando partiste.
Sei onde estás. Estás aqui...entre mim e ele, no entrelaçar dos nossos dedos, nas batidas compassadas dos nossos corações, estás no meu bolso e na minha alma.

Isa Mestre