quarta-feira, abril 11, 2007

Irmãos do Sonho

Agora a vida é a sério, chama por nós, estica-nos as mãos e espera que as agarremos com toda a força do mundo.
Recordo ainda a voz do pai,
- Um dia a vida será a sério.
É verdade. E nós a pensar que esse dia nunca mais chegaria, que seríamos sempre garotos debaixo das asas do nosso pequeno herói, protegidos pela força do amor que nos unia, nós a pensar que eram tudo palavras soltas no tempo, palavras de pai para ouvidos de filho, palavras de uma alma madura para uma semente em crescimento.
Depois, a vida fez-nos crescer e cresceu connosco.
No rosto do pai há ainda os meninos que fomos ontem, as pedrinhas lançadas em ricochete na ribeira, as fisgas arremessadas à lata pendurada no arame farpado das nossas vidas. Nas suas mãos, ainda os espinhos de uma existência sofrida, as marcas profundas na pele, o desejo de abraçar-nos novamente e sentir os seus dedos de encontro aos nossos.
Onde estamos, meu irmão?
Longe, longe. Como se nos separassem rios distintos, margens intransponíveis, livros onde se escreve o que somos e o que sentimos, ainda que os capítulos sejam intermináveis e repletos de palavras vagabundas.
E o coração, onde o deixámos? Ou será que nos tornámos meras peças de fábrica, produzidas em série?
Que tens tatuado no peito? O amor que nos acolheu ou o frio da ausência que nos mata? Que tens tatuado no peito?
A minha pergunta a percorrer o quarto, a soltar-se pela cidade, a voar em busca dos teus olhos sôfregos e ambiciosos…e lá no fundo de mim, novamente a voz suave, os olhos ternos, o sorriso franco e o gesto alegre,
- Um dia a vida será a sério,
E novamente o teu olhar de miúdo, os braços pequeninos e as mãos singelas, novamente a tua voz de quem quer ser homem assim que a vida lhe permita tamanha ousadia,
- Sim pai, sim pai…
E o pai quase a fingir que acredita que entendeste a lição, quase a virar costas e a sorrir, imaginando-nos homens feitos e de barba rija. Quase.
Afinal, passados tantos anos e tanta vida ainda somos uns meninos.
A infância não cai nem morre, simplesmente, por vezes esquecemo-nos de lembrá-la, e é isso que provoca em nós a ilusória sensação de nos imaginarmos maiores do que somos na realidade.
Um dia a vida será a sério, ouviste?

Isa Mestre