quarta-feira, novembro 15, 2006

O silêncio dos dias felizes

Aqui o silêncio não nos mata, não nos fere, não nos magoa.
Aqui o silêncio é a palavra mais bela do mundo, o eco mais profundo da alma, o silêncio é a tua voz e a minha quando estamos calados e nos assenta tão bem esse ar de ingenuidade.
Quando tu dizes,
- não há palavras,
E eu bem sei que não as há, eu bem sei quantas outras vezes preenchemos a ar de sons vazios e sem sentido, e tu também sabes, tu também sonhas que os homens nunca hão-de ter palavras nos momentos verdadeiramente felizes.
Havemos de ficar para sempre olhando-nos, procurando o que não se encontra, sonhando como tolos no palco de alegrias que é a vida.
Por isso, hei-de continuar a olhar sem saber que dizer, e quando me disseres que não tens palavras eu hei-de dizer-te que sou feliz.
Hei-de dizer-te aquilo que não se diz todos os dias, hei-de fazer-te sorrir como sorriste quando provaste o teu primeiro caramelo. E mais tarde, contá-lo-ás aos teus filhos, aos teus netos, dir-lhe-ás que no espaço do silêncio encontraste o amor, que na casa vazia da ausência encontraste a flor mais bela do mundo: a felicidade.
Nunca te esqueças de dizer-lhes que não há palavras para os momentos de felicidade, que não há sons quando a música dos sonhos nos embala a vida.
Sabes…talvez por isso sinta tanto a tua falta… porque o ar está cheio de palavras e não consigo agarrar nenhuma delas, porque as pessoas estão repletas de sons que me ensurdecem os ouvidos e me cegam a alma. E eu, perdida em mim, preciso apenas de silêncio. Do silêncio de quando nos olhávamos como se não existisse mais ninguém no mundo, do silêncio dos momentos felizes que hoje são demasiado grandes e não cabem na porta, do silêncio da felicidade que partiu como uma pena levada pelo vento…sem rumo, sem destino.
Sinto falta de te ter junto a mim e de ouvirmos o mar na sua melodia de revolta, o riso louco das flores que brincam no jardim, quando apenas nós sentimos, quando apenas nós nos acreditamos vivos num mundo de tanta gente a desejar a morte.
Não peço palavras que me façam esquecer que estou só no mundo, não peço sorrisos que me ensinem a sorrir, só peço o silêncio dos dias felizes. E tu, que pedes?

Isa Mestre

sexta-feira, novembro 03, 2006

Cresci, mamã!


A noite cai sobre nós, eu continuo a ralhar-te, continuo a acreditar que ainda sou a luz que te pode indicar o melhor caminho a seguir, que ainda posso desviar-te dos atalhos perigosos e devolver-te à inocência dos teus oito anos de idade.
Tu bem sabes que não, bem sabes que a vida nos guia pelo caminho que os nossos próprios passos marcam, afinal tu queres apenas dizer-me que aprenderás por ti próprio, que aprenderás com as feridas que doem mas curam, com as quedas que te derrubam mas te ajudam a crescer.
Eu continuarei a ralhar-te, a fingir que te posso salvar do mundo, proteger-te junto de mim como se estivesses numa redoma de vidro e ninguém te pudesse tocar.
Como sou rídicula...
Sou mãe, e embora seja cruel dizê-lo, todas as mães são ridículas.
Porque até último dia da tua vida continuarei a acreditar que posso resguardar-te de todo o sofrimento, que posso oferecer-te aquilo que mais ninguém te dará pela vida fora. Acreditarei que precisarás sempre de mim , mesmo que por vezes pareças esquecer que existo, mesmo que por vezes eu pense em voz alta,
-São miúdos...
Sim, para mim serás sempre um miúdo, o garoto que me pedia gelados e danoninhos de banana, o puto que com os olhos brilhantes de alegria suplicava por uma história ao final da noite.
E a tua voz sempre a dizer-me,
- Cresci, mãe, cresci.
E eu a fingir que nem te ouço, como quando tinhas nove ou dez aninhos e te dirijias à fita métrica colada no roupeiro e gritavas estridentemente,
- Cresci, mãe, cresci.
E para mim, ainda é tudo igual, porque embora tenhas crescido em centímentos , os homens fazem-se pelas mãos da vida, e essas segurar-te-ão e ensinar-te-ão até morrer.
Quando estiveres triste, ainda chamarás por mim no silêncio da tua alma, na súplica do teu olhar de homem que por momentos voltará a ser o menino que corria para os meus braços em busca de consolo...quando estiveres triste, dirás,
- Mamã, mamã... (como disseste tantas outras vezes)
Não te cansarás de repeti-lo até que as minhas palavras te sosseguem o espírito, até que a tua agitação apazigue nos meus braços, como quando eras menino e te acalmava o choro.
Hoje, não mais adormecerás no meu colo, mas procurá-lo-ás como consolo para os teus falhanços, como abrigo para as tempestades da vida, como antídoto para o ódio que por vezes parece apoderar-se do coração.
Partilharei com as minhas amigas a alegria de ter-te a meu lado, tal como no dia em que me chamaste "mamã", como no dia em que te nasceu o primeiro dentinho, como no dia em que deste os primeiros passos, dir-lhes-ei,
- O meu menino...
O meu menino que cresceu, que se fez homem aos poucos, que hoje reclama independência enquanto ainda chama por mim na escuridão da noite.
Vai meu amor, vai! Não posso nem devo impedir-te. A vida é isto mesmo. Partidas e chegadas.
Eu ainda me lembro... do cheiro a colónia de bebé, do teu fatinho azul quando te trouxe do hospital, eu ainda me lembro do brilho a inundar-me os olhos e do orgulho a ocupar todos os espaços ainda vazios do teu novo quarto.
Tudo foi perfeito. O berço, o bebé, o papá, a mamã, a família toda em teu redor e eu ansiosa que todos se fossem para estarmos a sós: apenas tu e eu, no mundo colorido que fomos ao longo de nove meses.
Hoje, volvidos um par de anos, vividos tantos momentos, passadas tantas horas e tantos dias, é hora de partir, de dizer,
-Até logo mamã,
Até logo meu amor, vai com as asas dos sonhos e constrói o teu próprio ninho, sê feliz porque só quem é feliz sabe voar pelos céus da vida.
(Para ti, que estás aí desse lado e tens as mãos cheias de carinho,escuta, são para ti estas palavras. Sente-as, vive-as. Sim, eu sei que o farás.)

Isa Mestre

sábado, outubro 28, 2006

Folha de Outono

Ainda que não quisesse, ter-te-ia trazido comigo nessa tarde de Outono. Porque foi no teu rosto que se encontraram os meus passos perdidos, foi no teu olhar que o meu amor renasceu, como uma flor que desabrocha depois da escuridão, depois da morte.
Nunca esquecerei os teus olhos que me pediam carinho, eram mundos espelhados no azul profundo do teu olhar, mundos diferentes dos que conhecera. Porque ao olhar os outros homens, senti-os vazios, ocos de sentimento, porém contigo foi diferente, porque os teus olhos pediam carinho e os deles sempre pediram desejo.
Porque não precisavas de roupas de marca e perfumes caros, porque conquistavas com o que tinhas dentro do peito, não precisavas de te sentir cheio de futilidade para finalmente seres alguém no mundo.
Só tu sorrias como nunca vi sorrir ninguém, o sorriso terno, os dentinhos brancos e brilhantes nessa boquinha de sinceridade, nessa ternura tão tua que desde o primeiro momento sonhei minha.
Por fim, o anel no dedo, o anel a dizer-me que não estás ali, que não és o homem que desejei naquele momento, que não és aquele que conheci e deixei escapar por entre os dedos vadios da vida. O anel a dizer-me para eu te esquecer, a dizer-me que já tens o coração ocupado e não tenho o direito de aparecer, de aparecer para te dizer aquilo que nunca te disse, para te mostrar o que sempre te escondi, para ser, finalmente, quem nunca fui, para te dizer somente: Amo-te.
Porém, talvez o nevoeiro me tenha cegado a vista e impedido de ver que o tempo passa, que o tempo apaga e esquece, que o tempo se encarrega de devolver vida a quem por momentos julgou perdê-la.
Deixa lá, eu esqueço, eu vou e nem te digo que estou aqui, eu sou cobarde e egoísta, eu sou!
Mas, esse anel no dedo paralisa-me os passos, cala-me as palavras, mata-me o amor com que sonhei durante anos. Afinal, eu só queria saber, eu só esconderia as lágrimas por detrás das cortinas do meu rosto e perguntar-te-ia aquilo que nunca tive coragem de perguntar-te,
- És feliz?
Não perguntaria se casaste, se tiveste filhos, se me esqueceste...não!
- És feliz? - apenas esta pergunta a ecoar dentro de mim, a escrever aquilo que sinto, a perguntar-te num sussuro aquilo que alma sempre quis saber, aquilo que alimenta o coração e te deixa tão nu perante o meu olhar.
Mas, não tenho esse direito. Quem sou eu? Quem sou eu dentro de ti? Ainda te lembras?
Aproximo-me timidamente enquanto lês o jornal, sento-me a teu lado e permaneço no silêncio da tarde de Outono passada no parque... Eu, apenas perdida no meu mundo de ilusões...passados tantos anos apenas sozinha, sozinha e vazia porque os sonhos já não me habitam, porque os pássaros já não cantam.
Tu, entregue ao mundo, quieto e calado quando apenas sinto os olhinhos a movimentar-se de uma linha para a outra.
Sento-me a teu lado e volto a ser a menina que te procurava ansiosamente na sala de aula.
Não sei que te diga, não sei que te chame, agora, só sei que te amo. Agora, o tempo cortou-me as asas, roubou-me as palavras, gastou-me os nomes...porque eu só sei que te amo.

Isa Mestre

domingo, outubro 08, 2006

A neblina da despedida



Poderia simplesmente partir, mas não quero.
Sento-me no leito das ondas e penso em ti.
Recordo-me das conversas à beira-mar, dos encontros no corredor da escola, dos sorrisos entre uma e outra alegria, das lágrimas nos intervalos frios da tristeza.
Eu poderia simplesmente partir...mas não posso, não posso e não quero.
Antes tenho de encontrar-te, abraçar-te com tudo aquilo que existe em mim, dizer-te as palavras maduras que em tempos me pareceram verdes e ridículas.
Tu mereces, tu mereces.
Não preciso de procurar-te porque sempre soube onde encontrar-te, sempre soube em que porta bater, sempre soube que sorriso me receberia...eu sempre soube e hoje ainda sei.
Por isso espero...toco nervosamente na campainha e espero...Oxalá nunca o tivesse feito, tomara tivesse sido bem mais fácil dizer-te adeus, como se dentro de mim não faltasse alguma coisa que fica aqui entre mim e ti , algo que não posso levar na mala.
O olhar foge-me para o teu carro, o pensamento diz-me que estás ali, que dentro de pouco tempo me abrirás a porta e eu permanecerei quieta sem saber que dizer-te, sem saber como te diga que vou, que vou e não sei quando volto, que vou e só vim para me despedir, que vou e só vim porque és importante, porque te adoro, porque viverás no meu coração até ao último dia da minha vida.
Tu não abres.Ouço o eco da campainha... e cá fora, o frio das despedidas, o cinzento do teu carro a mostrar-me de que cor se tinge o meu dia, as gotas de humidade no pára-brisas a mostrar-me quantas lágrimas chorarei por ti.
Já ouço os teus passos a aproximar-se da porta, já sinto o teu cheiro a misturar-se com a humidade que cai sobre mim, já pressinto as tuas mãos tocando suavemente na fechadura que te separa do mundo cá fora.
Chamas-me...
- Miúda...
Que saudades, que saudades sentirei de ouvir-te chamar-me assim, de ver-te sorrir, de me segurares as mãos quentes e me transportares um pouco de alento para dentro da alma...
Tu chamaste-me como todas as vezes, como nos dias de alegria, como nas tardes de tristeza, como nas gargalhadas, como nas chatices...
Agora, que me chamaste uma vez mais...como dizer-te que vou?
Tenho a voz entorpecida pela crueldade da vida, o coração gelado pelas tempestades que arrasam o meu cais, as mãos frias pelo gelo que se apoderou dos nossos mundos...estou triste e digo-te,
- Vou.
Como quando me perguntavas se queria ir beber um cafézinho,
- Vou.
Como quando afirmavas que teria força para fazer frente à vida,
- Vou.
Como quando sorrias e perguntavas se ia contigo,
- Vou.
Mas, tu bem sabes...o verbo é o mesmo, mas este ir é tão mais difícil que o outro...
Ainda que queira esconder o sentimento, está-me espelhada na cara a dor que sinto por partir, por vir aqui hoje e dizer-te secamente,
- Adeus.
Adeus, porque eu não tenho mais palavras, porque o que sinto não me sai dos lábios, vive no coração.
Pedes-me para entrar, mas eu fico, eu fico porque daqui a nada vou embora e nunca mais me vês, porque afinal só vim dizer-te que te adoro sem precisar de usar uma única palavra, eu só vim mostrar-te que falamos a mesma língua: a do sentimento.
Por isso, depois das palavras ditas, depois da amálgama de sentimentos que nos trespassa o peito, abraço-te apenas, como se naquele abraço não houvesse malas de angústia e sacos de dor...Como se eu fosse apenas, como se naquele abraço me transportasses para o aeroporto e eu te visse acenar-me lá do fundo.
- Nunca te esquecerei, sabes?
È claro que sabes!
Um beijo na cara, um até sempre, um “gosto muito de ti”, um adeus que nunca serei capaz de pronunciar, um sentimento que me salta do peito e se semeia no teu coração.

Isa Mestre

quarta-feira, setembro 27, 2006

Sozinho

Quantas antes de mim?
Quantos rostos antes do meu? Quantos sorrisos antes dos meus dentinhos a desenhar o teu mundo? Quantos?
E agora...apenas tu, tu e a mulher da rua, sentados no mesmo banco, esperando-me.
Não te olho, caminho de olhos vendados e imagino-te: a sorrir, sempre a sorrir, porque se não sorrisses não serias o mundo que procuro, mas réstia da escuridão que há muito encontrei.
Abro os olhos, porém não te vejo.
Apenas a mulher de rua, a cara magra e o corpo faminto, os olhos que parecem pedir mundos que me escapam por entre os dedos das mãos.
A pele tisnada pelo destino, as mãos sujas da miséria, os olhos gastos da vida.
Hoje, não te vou abraçar.
Só hoje, sentar-me-ei ao lado dessa mulher e falaremos sobre a vida, só hoje aprenderei a permanecer calada quando as nuvens negras ameaçarem o meu céu sempre tão azul, sempre tão profundo, sempre tão limpo.
Depois, enquanto me olhas e me pedes que te beije, procurarei desesperadamente nos bolsos alguns trocos...trocos de dor, trocos de culpa, trocos de quem não suporta ver a fome bater-lhe à porta sem saber que dar-lhe de comer.
Fingirei que não houve mundo depois disso naquela noite.
Fingirei que não me beijaste e não me disseste que me amavas, fingirei que não te apoderaste do meu corpo levando-me algures para outro mundo...
Porque na verdade, eu nunca estive contigo.
O coração permanece onde o olhar se perde.
E eu fiquei, no rosto daquela mulher, nas suas mãos desossadas e frias, ávidas de se aquecerem na fogueira da vida.
Embora os teus bracinhos me guiassem pela rua fora e as tuas palavras tentassem escrever mundos dentro de mim, eu fiquei, e tu sabes que eu fiquei.
Quando jantámos não precisámos de talheres porque comemos o amargo silêncio da dor, lambemos as feridas profundas do coração e ficámos ainda com o sabor do sangue na boca.
Ao amanhecer, senti-me só.
Pétala de rosa abandonada ao vento, espiga de trigo lançada sobre a seara.
De resto, nada mais, apenas o frio da solidão a congelar-me todas as partes do corpo.
Sabes... Pensei em ti.
A solidão dói e tu estiveste sozinho nessa noite, sempre sozinho.

Isa Mestre

quinta-feira, setembro 21, 2006

Longe

Dizes que me amas. Quem ama não esquece e tu esqueceste tudo.
Esqueceste que tenho medo do escuro, que gosto de gelado de baunilha com chantilly, esqueceste que de noite gosto de olhar as estrelas e inventar um nome para cada uma delas, esqueceste que cresci enquanto julgaste construir o teu mundo sem mim...
Hoje voltas.
Julgas que será como fazer uma viagem grande e regressar a casa vitorioso, imaginas que tudo estará igual: os móveis no mesmo lugar de sempre, a tua almofada guardada no roupeiro, as tuas roupas inundadas pelo cheiro a bolor e naftalina, e depois...depois do teu mundo, estarei eu, sentada no sofá esperando ansiosamente o teu abraço.
Dir-me-ás: Cresceste, meu amor. E eu já não te chamarei papá, já não te envolverei nos meus braços de meninice inocente, já não te farei mil e uma perguntas enquanto me sento no teu colo.
Hoje, chamar-te-ei pai (e que saudades eu tinha de chamar-te pai), de dizer-te: pai, pai, pai...como todos os outros, de dizê-lo e ver os teus olhos iluminarem-se como se iluminavam os olhos dos outros,enquanto eu sonhava um dia ver esse mesmo brilho espelhado nos teus.
Hoje, eu apertar-te-ei a mão enquanto tu puxas o meu corpo contra o teu. Sentirei que me queres abraçar, que queres que seja novamente a menina que envolvia os bracinhos no teu pescoço e te pedia gelado de baunilha, mas...aperto-te apenas a mão calejada do trabalho. Afinal, a vida ensinou-me que aos desconhecidos apertamos a mão. Desculpa papá.
Porque cresci, enquanto fugiste para a tua vida eu cresci, e quando olhaste para o teu mundo e julgaste vê-lo construído vieste até mim, para recuperar anos perdidos, para matar as saudades que eu nunca soube que tinhas, para dizer-me que me amas quando eu sempre quis um pai que me amasse, para me pedires que me sente no teu colo quando já tenho filhos esperando ansiosamente sentar-se no meu.
Cresci, pai, cresci! Não vês?
Já não te lembras do dia em que partiste e eu chorei? Chorei. Chorei todos os dias. Chorava sempre que saias.
O tempo é um fantasma que come as recordações, que come o mundo e nos obriga a construir uma nova casa sobre os destroços da que ruiu.
Foi o tempo, papá, foi o tempo - dir-te-ei.
Agora é tarde, tarde para perceberes que eu estou aqui, que sempre estive, precisei do teu amor, do teu cheiro de homem perfumado nos meus lençóis enquanto me contavas histórias de embalar, das tuas mãos de pai dedicado a tocar no meus cabelos e a dizer-me que sou linda.
Perdeste-me. Perdeste o mundo que um dia construiste, lançaste a semente à terra e partiste, deixaste-a crescer sozinha e hoje que queres? Que queres papá? Tolher os frutos da árvore que plantaste? Queres ver se ainda há restos de ti nas suas raízes? Queres saber se ainda te chamo todos os dias na escuridão da noite?
Sim, pai. Tu sabes que sim.
Quem ama não esquece.
Amo-te. Mas o tempo não muda, o amor perdoa mas não esquece.
Nunca mais serei a menina que corria para os teus braços a contar-te todas as novidades. Nunca mais.

Isa Mestre

sábado, setembro 16, 2006

Antídoto

Enquanto seguravas habilmente na máquina, eu sorria, fingia que o meu mundo eras tu. Tu e mais ninguém. Nem as árvores no fundo da fotografia, nem os prédios altos a ameaçar tocar o céu, nem os postes de luz, que sempre nos fizeram lembrar girassóis, nem as nuvens cinzentas que um dia ocultaram o nosso sol.
Eras tu o meu mundo.
Os teus dedinhos inocentes enquanto o flash me incidia nos olhos, a aliança no dedo enquanto julguei ser o teu mundo também.
Agora esquece.
Não há mais mundo. Destruiste algo que demorou anos a construir, foste dinamite no meu sentimento, explosão na minha força de viver.
Esquece apenas.
Finge que não existo, que nunca existi.
Volta para o teu lugar, para os filhos que esperam ansiosamente o pai, para a mulher que sentada junto à janela procura apenas o teu carro...todos os dias, todas as horas, quando parece que nunca mais vens, quando tudo a recorda que já não vens.
Vai, vai agora e não digas mais nada, afinal és apenas destroço do meu mundo de loucura.
Não te amo.
Como posso amar alguém que não conheço, que nunca conheci? Alguém que se diz livre e carrega sobre os seus ombros a pesada tarefa de alimentar uma família, de contar histórias aos meninos antes de adormecer, de colocar o ombro sobre o pescoço da sua mulher e dizer-lhe que está tudo bem.
Foste uma mentira.
Fizeste-me ser palavra do teu pacto de falsidade, ser sentimento nesse coração que nem sabe sentir.
Sinto-me perdida. Porque enquanto a tua família esperava por ti para jantar era na minha cama que dormias, era a minha pele que percorrias, era o meu perfume que cheiravas...
E eu,ainda inocente, sempre a imaginar-nos um dia mais tarde, um dia mais tarde talvez no altar, talvez com muitos filhos, talvez com uma casa maior do que aquela em que habito.
E eu que nunca tive sonhos quis sonhar a teu lado.
Agora vivo numa casa de quatro divisões: um quarto de ódio, outro de saudade, um de amor e um outro de culpa.
Só queria tocar nos cabelos finos desses teus meninos e dizer-lhes que vai ficar tudo bem, que amanhã o papá chegará a horas, que amanhã não haverá trânsito infernal nem trabalho a mais no escritório. Dizer-lhes que não sou vagabunda, que não sou a ladra que sem querer roubou o amor de uma família, eu queria apenas devolver-lhes o ouro, devolver-te áqueles que mais te merecem.
Será que sabes o que é uma família? Uma mãe, um pai, os filhos. Um jantar, um serão juntos a falar de parvoíces, uma tarde a responder às mil e uma perguntas dos garotos, uma manhã a levá-los à escola enquanto eles choram e só querem voltar para casa, um dia a vê-los crescer e fazerem-se homens perante o teu olhar.
É isso.
E foi em tudo isto que falhaste, que desonraste aqueles que te deram alento tantas vezes, que te ajudaram a erguer a cabeça e seguir em frente.
Falhaste.
Tu falhaste e eu falhei.
Onde estava o teu mundo nos momentos em que sorrias, em que me abraçavas , em que me beijavas? Onde? Escondido por detrás da cortina do meu quarto? Fechado no guarda-fatos do teu coração? Envergonhado atrás da porta enquanto eu te dizia palavras bonitas?
Onde estava o teu amor quando te disse que queria casar contigo, ter filhos a teu lado, onde estava?
Morreu?
Não. O amor nunca morre. Mas adoece...
Por isso, hoje, não digas mais nada, não passes os teus dedos sobre os meus lábios dizendo-me que me amas, não combines a hora a que nos encontramos amanhã.
Se me respeitas, faz apenas isto: abre o armário do teu coração e encontra nele o medicamento para curar esse amor, encontra o antídoto para este veneno e aprende a renascer ao lado da tua família. Ouviste? Tua.
Não é nossa, é tua.
Tu, ela e eles.
Para ti:Sê feliz.
Para eles: desculpem.

Isa Mestre

quinta-feira, setembro 07, 2006

Fico

Porque vieste se sabes que vou? Se sabes que a vida são partidas e chegadas.
Porquê? Vieste para dizer-me "fica", ou vais continuar a calar esse grito que te atormenta? Vais continuar a fingir que está tudo bem? Que não sentes, que nunca sentes...?
Eu já sei que é tudo mentira.
Já vi o que há para além do homem arranjado que usa perfumes caros e se barbeia todos os dias, eu já vi a luz que te percorre todos os poros do corpo, eu já vi que me amas.
Não precisas acender o cigarro e dizer-me que te apeteceu falar, já não precisas coçar a orelha timidamente enquanto bates suavemente com o pé no chão.
Estás nervoso, eu sei.
Revejo-me. Quantas vezes estive assim? Quantas vezes fui a menina apaixonada que tremia, que esbracejava, que sorria com medo de sorrir, que ajeitava o cabelo e perguntava ao coração quantas mais vezes bateria ele assim...
Não te preocupes, já não precisas de dizer-me que sou importante para ti, que as nossas birrinhas foram apenas loucuras de dois jovens em busca de um lugar no mundo, já não precisas atirar o cigarro pela janela fora e fingir que não se passa nada.
Eu sei, eu sempre soube.
Mesmo quando disseste que me odiavas eu sabia que naquela palavra estava a maior expressão de amor, quando foste embora eu soube que voltarias, quando choraste eu soube que sorririas, quando me olhaste eu soube que jamais poderias olhar outra mulher assim.
O amor sente-se, conhece-se, aprende-se.
Sentas-te outra vez, ainda começas a frase,
- Sabes...
Vamos, diz, diz lá o que anda preso nesse coração, esse sentimento tão lindo que te fez vir até aqui, que te fez perder dois autocarros e estar diante de mim com esse olhar brilhante.
Não consegues terminar a frase, o amor retira-nos as palavras, torna-nos tolos em todos os momentos, mata-nos a naturalidade.
Eu sei tudo.
Sei que acordaste e pensaste que era mulher para ti, sei que te olhaste ao espelho e ajeitaste os caracóis que eu tanto gosto, sei que te fixaste na minha fotografia e repetiste milhares de vezes o que irias dizer-me.
E agora estás sem palavras.
Não te preocupes querido, o silêncio segredou-me ao ouvido o que querias dizer-me.
Eu sempre soube.
Mas porquê apenas hoje? Hoje que vou, que nada me pode impedir, hoje que olho como uma louca para os bilhetes de avião enquanto me dizes que me amas.
Eu ia em busca do meu sonho...quem julgas que és? Já não sou a menina que deixaria tudo e correria para os teus braços...
A vida ensina, a vida castiga, magoa, mas ensina.
Perguntas-me se acredito no amor. Pergunta tola. Já sabes a resposta, porque perguntas? Para encher o ar de palavras? Para te sentires um pouco melhor enquanto eu vou ao quarto e carrego nas mãos as minhas duas malas? Para teres a certeza que essa pergunta há-de ecoar na minha alma até ao final dos meus dias?
- Claro que acredito.
E tu sorris.
Fica, fica, fica. Pareces um cachorrinho à volta dos donos, pedindo ossinhos e carinho. Também é isso que queres. Ossinhos e carinho.
Talvez seja também isso que quero, ter-te só para mim, dormir a teu lado e chamar-te cabeçudo na manhã seguinte, perguntar-te tudo aquilo que ainda me atormenta e ouvir-te carinhosamente a desfazer todas as minhas dúvidas.
Que sentido faria partir? Sobrevoar o mar e atingir as estrelas? Porquê, para quê? Se tu és o meu mar em noites de tempestade, se és a minha estrela quando o mundo parece mergulhado na escuridão, se és um único sentimento por entre tanta gente que nunca soube sentir.
- Amo-te,
dizes.
Cala-te. Essa palavra está gasta, é bonita mas está gasta. Guarda-a dentro de ti e usa-a um dia mais tarde, um dia em que te sentes à lareira e contes aos teus netinhos a nossa história. Aí dir-lhe-ás: Como a amava...
E a palavra será novamente bela, ganhará luz, voltará a transportar para dentro de mim algo que me peça vida.
Por agora, fica apenas. Afinal eu já sei tudo, sempre soube.
Não vou, fico contigo, sempre quis ficar, sempre quis saber que te perdia para finalmente te encontrar, para te ouvir dizer que te faço falta, que sou especial, que não posso ir....Eu sempre quis ver-te chorar por mim. O amor é também vingança, ou não fossem todas as vezes que chorei por ti.
Mas eu fico, fico e amo-te.

Isa Mestre

terça-feira, agosto 29, 2006

Transparente

Hoje, parece tão fácil esquecer o primeiro beijo e recordar o último, o que não demos, o beijo em que a minha boca chamou pela tua e os teus lábios fugiram como vagabundos na escuridão da noite.
O coração divide-se entre aquilo que vivemos, mas é tão mais difícil pensar no sol que iluminou as nossas vidas quando agora são apenas nuvens cinzentas que ameaçam transformar-se numa tempestade completa.
Tu queres encher o ar de palavras, explicar-me tudo, eu quero simplesmente o silêncio da dor, o silêncio de quem pede apenas a solidão como companheira de sempre.
Agora já não há palavras que me devolvam o sol à alma, a àgua à minha secura, não há, entendes?
As recordações bailam na minha memória, luto contra elas, luto todos dias por lembrar-me que afinal nem tudo foi negativo, que nem tudo foram lágrimas e sofrimento. Também houve coisas boas, e tu sabes que houve, tu dizes-me que sim, eu contradigo-te: Não, não...Mas afinal também eu sei que sim.
E sabes? Talvez até tenham sido mais, talvez o sol até tenha brilhado mais do que imaginamos, mas hoje as nuvens são tão negras que não nos deixam ver nada.Nem os pássaros da nossa paixão que ainda esvoaçam no jardim, nem o arco-irís do sentimento que se tinge de mil cores sem nunca o podermos vislumbrar.
Mas um dia, quando toda esta neblina de dor for para longe, eu sei que vou poder sonhar, ao abrigo do que sinto, com o amor que transporto no peito vou poder sonhar novamente como uma garota e lembrar-me-ei dos bons momentos, do primeiro beijo, da primeira saída, do primeiro olhar. Lembrar-me-ei que aquilo que vivemos não se resumiu a um adeus ténue e sentido numa rua qualquer.
E saberei que a tua cara triste de ontem foi um dia a alegria espelhada no teu rosto, foi um dia o sorriso que me despontou das faces e me fez acreditar que o mundo seria perfeito.
Recordar-me-ei de tudo, com a clareza de uma manhã iluminada, com a beleza de uma aurora a despertar.
Sei que enxaguarei as lágrimas e então poderei ver o mundo tal como ele é, sem ressentimento no peito, sem dor para me matar a dignidade, sem tristeza para guardar a minha alegria num saco profundo da alma.
Um dia, será mais fácil recordar o primeiro beijo, um dia em que o céu não esteja tão cinzento e o teu mundo não ameace ruir sobre o meu. Um dia destes quem sabe...afinal o amor é como a lua, tem as suas fases.

Isa Mestre

Saber que vens


Onde estás? Onde estás quando eu ligo e não atendes, quando escrevo e não respondes? Onde? Onde, que já estou cansada da voz da senhora das telecomunicações a dizer que de momento não podes atender. Sim, eu sei. Pudesse ela dizer-me por onde anda esse sorriso...
E eu sempre à espera que amanhã seja diferente, que a tua voz eufórica do outro lado da linha se cruze com o meu sorriso tímido do lado de cá.
Sabes...Tenho saudades.
Embora por vezes seja tão difícil dizê-lo, é a verdade.
Tenho saudades, ouviste?
Tenho saudades de ser uma menina e tu me chamares para junto de ti, tenho saudades de ser uma mulher e te sentares a meu lado.
Preciso do teu,
- Vem cá ver-me! Passa por cá hoje!,
preciso.
Ao menos para saber como estás, se ainda tens a mania de perder folhas importantes, de chegar atrasada às reuniões, de combinar mil e um eventos com mil e uma pessoas para o mesmo dia e para a mesma hora.
Preciso de saber que nada mudou, que a tua casa estará sempre pronta a acolher-me e os teus braços abertos para aconchegar-me, preciso e saber que ainda lá estarás nos dias importantes e nos dias de merda.
Quero saber se ainda queres escrever comigo ou se já esqueceste que as minhas folhas esperam ansiosamente as tuas palavras.
Vem, que eu quero dizer-te quem me magoou, o que aconteceu, eu quero gritar que estou farta e sentir a tua mão nos meus cabelos, eu quero ouvir-te,
- Força, Força! ,
quero dizer-te as tolices de sempre e convidar-te para um café.
Quero mostrar-te as fotografias e dizer-te quem é cada um deles, enquanto finges que me ouves.
Eu quero ver-te sair apressada a dizer-me um adeus fugidio, porque te esqueceste que tinhas de ir buscar a tua filha à escola, eu quero que me digas,
- Até logo,
porque,afinal, eu só quero saber que ainda vens.

Isa Mestre

domingo, agosto 20, 2006

Chegar a ti


Sentado na pedra onde tantas vezes olhámos o mar, sinto as ondas beijando-me a sola dos pés, o cheiro da maresia invadindo-me as narinas.
Quero crescer por dentro, como crescem os verdadeiros homens, como voltam a crescer as árvores às quais lhes foram retiradas as raízes.
Eu, apenas quero crescer depois de ti, depois que o teu olhar se desprendeu do meu e pousou noutros lugares deste nosso horizonte, depois que as tuas mãos abandonaram os meus dedos serenos e fugidios, depois que o teu sorriso maroto se perdeu por detrás da infinita rocha da nossa vida.
Mas, sinto-me cansado de tanto correr, correr para longe quando a eminência do teu aparecimento está sempre tão perto, correr atrás de novos mundos quando o meu mundo continuará a ser sempre teu, correr na tentativa de encontrar uma nova estrada quando o alcatrão do nosso sentimento ainda me prende os pés e me impede de prosseguir. Mas eu continuo a correr, a correr atrás de um caminho que se revela impossível de encontrar, porque eu corro na escuridão de olhos vendados pela fúria, eu corro sem saber para onde, quando todos me dizem que afinal basta correr...desaparecer por momentos e fingir que tudo não passou de um sonho mau...basta correr e no dia seguinte acordar cansado mas sem ti, cansado mas sem o sentimento que me percorre as veias e repousa no meu triste coração.
Eu queria correr para longe, mas, diz-me, para quê correr se estarás sempre aqui? Se o coração não é objecto que se substitua ou se ensine a amar? Correr para quê, se as minhas pernas só procuram as tuas no frio do Inverno que se estende perante o meu olhar?
Já não quero mais este mundo que escolhi para mim, na verdade, talvez nunca o tenha querido verdadeiramente.
Tu bem dizias que as pessoas mudavam, eu dizia que não, fingia que seria sempre o mesmo garoto apaixonado que fazia loucuras por ti, o que corria atrás da tua sombra como se corre atrás dos autocarros...louco, extasiado, eufórico.
Mas eu mudei, hoje que vejo o pôr-do-sol percebo que nada na vida será igual, que apenas a natureza tem a incrível capacidade de se repetir todos os dias. Eu não, eu mudei, tu mudaste, afinal todos mudamos, precisamos da mudança tal como os dependentes precisam da sua droga.
Porque é que o que não devia acontecer acontece sempre? Porque os caminhos que buscamos nos fogem por entre os dedos? Porquê, meu amor, porquê?
Eu quero aprender a sorrir depois das lágrimas. Deixa-me apenas ser um raio de luz que entra pela tua janela a dentro, uma onda que te beija os pés e te faz cócegas, deixa-me apenas correr pelas estradas da vida para chegar sempre ao mesmo lugar: a ti, só a ti.

Isa Mestre

sexta-feira, agosto 18, 2006

na minha alma.

- Obrigada,
e tenho vontade de abraçar-te outra vez, ainda lanço os braços, mas tu bem sabes como nos sentimos ridículos nestes gestos. Por fim, as minhas mãos perdem-se nas tuas e apertas-me com força,
- Acredito em ti,
eu sei, eu sempre soube, quando corri até ao final para chegar em primeiro, quando sorri na eminência do choro, quando sonhei...eu sempre soube que estarias lá para gritar pelo meu nome, para sorrir comigo, para sonharmos, ainda que o palco dos sonhos parecesse tão distante do nosso olhar. E quando te disse,
-Desculpa,
soube que acreditavas em mim, que com os olhos repletos lágrimas e o ressentimento a respirar em ti, soube que acreditavas nas minhas palavras.
E eu disse,
- Nunca te esquecerei,
e tu sabias, tu sabias que nunca te esqueceria, sabias que quer o dissesse agora ou um minuto antes de morrer seria igual, eu nunca te esqueceria.
E tu sorrias, com esse sorriso de quem ama, de quem dá tudo aquilo que tem dentro do peito, sorrias orgulhosa de mim, e eu de ti, tanto, tanto...
- Não me arrependo,
disseste tu.
Obrigada. Por não te arrependeres, por acreditares naquilo que sou mesmo quando aos olhos dos outros sou um trapo velho e agastado do tempo, um trapo que já limpou bem a loiça, mas hoje desilude dia após dia.
Obrigada por esse olhar sempre tão terno, sempre tão teu...pelas vezes em que estava triste e me fizeste sorrir, por me ajudares a encontrar o caminho certo quando a minha tolice enveredaria por outros lugares.
É claro que me recordaria de ti. Pergunta tola. Como poderia esquecer-te?
As pessoas são como as estrelas, umas mais cintilantes que outras, umas que nos captam a atenção e se fixam no coração, outras que simplesmente nos passam despercebidas.
Obrigada por teres brilhado um dia para mim, por teres iluminado um cantinho do meu mundo com o teu sorriso, por me teres ouvido e dedicado sábias palavras, palavras que não esqueço, que vivem em mim e hão-de ser aquilo que sou.
Eu ainda me lembro das conversas ao fundo do teu quintal , ainda me lembro de te ver a meu lado com o cigarro por entre os dedos, o cigarro proibido que tanto amavas, o cigarro com o qual eu ralhava mas acabava sempre por sorrir.
Ainda me lembro de anoitecer enquanto falávamos, de teres de fazer o jantar, de brincar com os teus filhos...mas permanecias em silêncio.
- Não há problema,
dir-me-ias.
Para ti não havia horas más nem horas boas, o teu tempo era o meu tempo sempre que eu precissasse dele.
Tu a dizer-me que tenho de crescer, e eu a sorrir.
- É verdade, é verdade,
dir-te-ia.
Deixa lá, crescerei com o tempo, tal como cresceste.
Ouvirei a tua voz do outro lado do telefone chamando pelo meu nome...(como gosto de ouvir-te chamar pelo meu nome).
E sei que do outro lado sorrirás, sorrirás por mim e eu sorrirei por ti.
Cresceste, pensarás, mas faltar-te-á coragem para dizê-lo, tal como me faltou coragem para abraçar-te.
Deixa lá, eu sei que cresci, que crescerei até morrer a pensar nessas tardes em que o sol se punha enquanto te falava de coisas banais.
Crescerei ao pensar que quando chorei tu estavas lá para me dar a mão, que não me mandaste parar como todos os outros, mas acolheste as minhas lágrimas e ensinaste-me a crescer com elas.
Crescerei ao pensar que me disseste que eu era isto e aquilo, ao pensar que mesmo magoada pelas tempestades da vida encontrei sempre nas tuas plaavras um porto de abrigo para as minhas tormentas .
E pensar que enquanto os outros me olhavam pela porta entreaberta, tu me beijaste as faces fustigadas pela dor e me abafaste a cabeça contra o teu leito...
E perguntaste,
- Como estás?
Obrigada por perguntares, obrigada por perguntares sempre e te preocupares se estava sorridente, triste ou magoada.
Obrigada por nunca desistires de encontrar o meu sorriso, estivesse ele onde estivesse.
Obrigada por teres sido connosco à casa das cópias e por termos chamado palhaço ao patrão, obrigada por teres voltado nos momentos mais difíceis.
As palavras são tão inúteis quando sabemos de que falamos....ou melhor, do que sentimos.
Todavia, deixo-te com elas, onde quer que estejas... ou a fazer o jantar para os teus filhos, ou a preparar o trabalho para amanhã, ou a vasculhar nas recordações antigas, ou...quem sabe, no fundo do teu quintal a fumar um cigarro.
Deixo-te com aquilo que somos e o que sentimos.
Obrigada por me teres possibilitado tantas recordações, tantas e tão boas.

( Para ti, que estás aí e me lês. Sabes que são para ti estas palavras. Eu sei que sim.)

Isa Mestre

terça-feira, agosto 15, 2006

És


Gostava de conhecer-te melhor. Entrar pelos teus sonhos a dentro e saber o que te habita, saber de que cor se tinge esse sorriso inatingível com que me recebes, eu queria saber de que és feito, de onde vieste e para onde vais.
Porque por vezes não pareces como eu, como todos nós, existe em ti essa magia de garoto, como se ainda precisasse de te mudar as fraldas todos os dias e dar-te o biberão a horas certas, ainda existem na tua alma essas mil e uma perguntas, os porquês todos encerrados dentro de ti, esse mundo que eu não conheço, que eu nunca hei-de atingir, porque tu sempre me hás-de mostrar o que sempre conheci, dizendo-me que te desenrascarás sozinho.
Mas eu apenas queria olhar mais para dentro de ti, conhecer aquele que dorme a meu lado todas as noites, que de manhã acorda com os olhos inchados do sono e corre para a casa de banho, aquele que eu ouço cantarolar no chuveiro, quando parece estar tudo bem...parece.
Mas eu não sei, eu nunca saberei, porque o teu corpo há-de ser eternamente meu mas a alma, essa será tua, tua e de quem te habita, e eu serei uma estranha que com os olhos cerrados tenta percorrer o labirinto daquilo que és, uma estranha que tropeça, que se magoa, que volta a erguer-se na expectactiva de encontrar em ti uma luz, algo que lhe peça vida, algo que acenda dentro de si essa chama que se apaga lentamente, até morrer, até ser simplesmente o cheiro a queimado, o incenso na sala...a essência de ti espalhada algures por aí a escapar-me entre os dedos das mãos.
Deitas-te a meu lado, entre nós o menino, o nosso filho, fruto do amor e da alegria que partilhámos, ele sorri, afinal é tão bom estar no quentinho da cama dos pais quando o gelo do inverno mata lá fora...Ele sorri ao pai que nem conhece, que eu também não conheço, ao homem que lhe dá a mão e o leva a passear, ao que o leva à escola e lhe deposita um beijo, ao que o adormece e lhe conta histórias.
Mas ele não te conhece...porque os nossos olhos apenas conseguem ver o que és por fora, a embalagem que aprendeste a criar para te defenderes de tudo aquilo que magoa, de tudo aquilo que tenta espreitar para além do horizonte que a nossa visão alcança.
Eu quero mais que um corpo, quero uma alma que conheça e possa amar como nunca amei.
Eu quero e tu dizes que não...Tu sempre a rejeitar subtilmente os meus pedidos...Será que não entendes que sou uma menina que quer conhecer-te? Que as minhas mãos querem percorrer-te , agarrar-te os sentimentos, sorrir-te e ver-te sorrir, não apenas com os lábios, mas também com a alma.
Eu quero saber o que há nessa praia de água límpida e areia pura, o que há dentro do homem que embora pareça o ser mais feliz do mundo esconde dentro de si uma enorme tristeza.
Eu já não quero o “papá” exemplar, nem o marido que chega sempre a casa a horas, eu já não quero o estudante aplicado que um dia se tornou médico. Eu já não quero aquilo que os outros quiseram que fosses. Agora, quero-te apenas a ti. Mostra-me a alma, ainda que seja por breves instantes, deixa-me ver aquilo que te habita!

Isa Mestre

sexta-feira, agosto 11, 2006

Nas tuas mãos, o mundo


Nas tuas mãos está o mundo, mãe.
Porque foste tu que mo ofereceste desde a minha primeira lufada de ar fresco no jardim da vida. Transportaste-me com carinho por entre os teus dedos sábios do tempo e trouxeste a vida para dentro de mim. Trouxeste tantas coisas mãe, tantas...que hoje olho-me ao espelho e vejo o que és em mim. Orgulho-me disso. De ser parte de ti, de sorrir como tu, orgulho-me que os teus braços estejam sempre prontos a acolher-me quando a minha meninice ainda chama por ti.
Obrigada seria pouco para quem luta todos os dias por mim, para quem me defende com o seu escudo protector de tudo aquilo que possa ferir-me. Eu sei que obrigada não chega, por isso ofereço-te o que de melhor pode haver no coração dos humanos: os sentimentos. Os meus sentimentos são palavras. Palavras aqui, palavras ali, palavras que me saem do peito e das mãos, palavras que tu me ensinaste a escrever quando guiaste os meus dedos pacientemente pelo papel.
Ofereço-te o meu mundo nestas linhas. Merece-lo.
Sei que as minhas letras não vão com o vento, mãe, elas ficarão sempre no teu peito, e quando eu encostar a minha cabeça para ouvir o teu coração senti-las-ei tocando-me, acariciando-me o rosto imaturo.
Obrigada por me mostrares tantas vezes o caminho certo. Continua a fazê-lo, porque sem ti eu serei uma criança perdida no supermercado, uma árvore sozinha na imensa floresta, uma luzinha na escuridão da noite.
Pela tua mão cresci, hoje, posso parecer do teu tamanho, mas, é tudo ilusão. Tu és grande mãe, muito grande. Na alegria de viver, na coragem, na força, na certeza com que nos criaste sobre os teus braços frágeis e fugidios.
Oxalá pudesse ser do teu tamanho...quem sabe, um dia? Agora, ainda tenho de crescer, por mim, por ti, por nós, pelo mundo.
Levarei sempre no peito as armas que me deste, os sentimentos que me ensinaste para fazer face a este mundo louco. Não vou ferir, afinal, o verdadeiro amor não magoa.
Tu sabes e eu sei.
Seguirei o nosso caminho, pela estradinha que os teus dedos me indicarem far-me-ei mulher aos poucos e tu olhar-me-ás e pensarás na menina que ontem chorava nos teus braços pedindo alimento.
Porque nas tuas mãos estará sempre o mundo, o meu mundo mãe.

Isa Mestre

quinta-feira, agosto 10, 2006

Procuro-te


Nas tardes quentes de Lisboa, tu sorrias como estrela cintilante no céu, sorrias e dizias parcas palavras. Era sempre assim. Tu, sorridente, calada, perdida na imensidão da nossa cidade, eu, a contar-te histórias que tu já sabias de cor, mas, fingias ouvir-me, sempre com a mesma alegria, com o mesmo olhar penetrante e fiel.
Naquele dia trouxeste todos os outros dias para dentro de mim: as tardes quentes na esplanada quando pedias um pastel de nata e um café, as manhãs geladas de inverno quando me esperavas ao final da rua, as noites tristes de Outono em que as árvores se despiam perante o nosso olhar frio da vida. Trouxeste todos os momentos, afinal vinhas com as mãos cheias de recordações, sim...recordações. Porque hoje não são mais que isso, talvez nunca tenham sido.
Disseste: Vou partir. Eu fiquei calado, pensei: Partir? Mas porquê partir?. E tu voltaste a dizer: Vou partir... Sim, eu sei, eu já tinha ouvido a tua voz segura no interior da minha alma frágil, eu já tinha visto as tuas asas a querer voar do ninho de mim, eu já sabia que um dia dirias: Vou.
Sorri-te apenas, afinal, quando o coração chora, o rosto sorri. È sempre assim, será sempre assim.
Sorri-te e no dia seguinte levei-te ao aeroporto.
Fica, dizia eu, tu fingias não me ouvir, olhavas atentamente os ecrãs repletos de partidas e chegadas, repletos de ti e de mim, porque em cada destino daqueles estava um sonho nosso, um sonho que abandonaste, como se abandonam os barcos no cais.
Tu a partir para o check-in, e eu, a chorar por dentro, com vontade de dizer-te que estava a sofrer, que não estava contente como imaginaras, vontade de dizer-te que me sentia um palhaço no meio do circo das nossas vidas.
Pela última vez, já com as lágrimas a rasarem-me os olhos, disse-te baixinho: Fica.
E tu, tal como um pardal que quer saltar do ninho, respondeste-me: Não posso.
Depois, perdi o rumo, não me lembro de mais nada, só as tuas mãozinhas leves e delicadas no ar dizendo-me adeus, só o teu perfume inundando as minhas narinas pela última vez, só o teu olhar e as máquinas do aeroporto a apitar, só as tuas mãos a percorrem novamente os bolsos à procura de metais, só tu...sempre tu.
Anda...disseste-me. Devolvi-te a afirmação : Não posso.
Ainda há mundo à minha espera, e tu sabes que há, ainda há a mesa do escritório a pedir-me para pousar os meus braços cansados de procurar-te, ainda há as folhas de papel insistindo para que te escreva, ainda há vida em mim quando pensei morrer naquele adeus vagabundo.
Hoje, minto. Perguntam-me por ti e minto. Não estavas bem , precisavas de mudar de vida, merecias mais....Mentiras apenas, tudo mentiras! Foste sim! Foste porque quiseste, porque um dia acordaste e pensaste voar mais além, pisar outros mundos, sentir o cheiro de outras cidades, beber bebidas caras nos bares de qualquer outra parte do mundo.
E disso nem eu nem tu tivémos culpa.
Eu não pude e tu não pudeste. Simplesmente isso.

Isa Mestre

terça-feira, agosto 01, 2006

Fugi


Sim, tens razão, fugi.
Fingi perder o tempo, as malas carregadas de recordações apenas nossas, fingi perder o oásis de ti para te encontrar noutros mundos, noutros caminhos.
Não quero explicar-te onde erraste, onde me acorrentaste com algemas de cobre ao ouro eterno do teu coração...Não! Não quero!
Porque de tanto ferir aqui dentro, esta ferida hoje já não dói, talvez me tenha habituado a viver com ela, com os teus sentimentos secos no meu coração repleto de magia.
Sento-me à mesa e já não espero por ti, não tens nada para me dar e eu sempre soube disso, sempre soube e tentei não saber, sempre procurei e nunca encontrei.
Estás vazio.
O meu mar de sonho não pode perder-se em ti, entende-me.
Procura-me, porque tu nunca soubeste o que era perder-me. Procura-me agora, vai atrás de mim e diz que me amas, que queres os meus lábios só para ti, pega na mala das nossas recordações e trá-la de novo para dentro de casa. Vens? Procuras-me na noite agora que me perdeste no teu imenso dia?
Traz a tua guitarra e canta-me canções, como nos velhos tempos, quando acreditei que eras menino de ouro no meu mundo encantado, quando julguei puras as tuas palavras e transparentes os meus sentimentos.
Fizemos tanto fogo com a nossa paixão...aquecemos tantos corações com o sentimento que nos percorria a alma...mas hoje, hoje somos nada. Nada. Ouviste?
Tu sabes e eu sei.
Perdido, algures no mundo procuras por mim na noite fria, não me amas, mas queres-me a teu lado. Desejas apenas saber que sou tua, e de mais ninguém, saber que outro não me beija e sinto aquilo que sentia quando me beijavas, queres ter a certeza disso, então chamas-me. Mas não te ouço. Estás longe e a tua voz não chega para alimentar os meus sentidos. Grita, grita por mim.
Eu, do outro lado do mundo, espero cansada junto ao rio onde nos conhecemos, onde construimos tantos mundos sem sair do mesmo lugar, onde descalçamos os sapatos e molhámos os pezinhos no mar do amor. Trago comigo a maleta das recordações, penso em ti, penso em nós, penso no nada em que nos tornámos.
Vou lançá-la ao mar, com ela morrerá o que fomos.Talvez não morras em mim, mas o nosso amor acabará por perder-se no fundo deste rio, morrerá onde nasceu.
Beijo-a, como se te beijasse, lanço o braço para trás e antes de largar o nosso amor, sinto uma mão tocando-me.
Ès tu, sei que és tu, conheço-te o cheiro a tabaco e perfume, conheço-te o toque.
Olho-te. Já não és nada, existes dentro de mim e amo-te, mas não és nada, não podes ser nada no tudo que já foste.
Vieste tarde para dizer que me amavas, vieste quando em mim já não há forças para superar a solidão de tantas noites a chamar pelo teu nome, quando o meu próprio nome já está gasto, quando eu já não sei o que é o amor. Dizes “amo-te” e eu permaneço calada, como se as tuas palavras se enterrassem no fundo do túmulo do nosso sentimento.
Desculpa. Ficarás sozinho no cais da vida, vou-me embora, vou como tantas outras vezes o fizeste, vou, porque tal como dizias o amor é como o vento, passageiro e feroz.
Pega a nossa mala, leva-a tu desta vez, talvez te faça bem carregares as recordações do amor contigo, tornar-te-á mais homem, far-te-á crescer aos poucos.
Não me procures, agora, serás incapaz de encontrar aquilo que fui. Não procures...Eu estou aqui, diante da tua imagem triste, estou aqui e vou embora. Amo-te, digo antes de partir, os meus passos são sentimentos perdidos pela estrada da vida. Se vieres talvez possas apanhá-los e reconstruir o meu coração...Talvez.

Isa Mestre

terça-feira, julho 25, 2006

Rosmaninho para ti

Eu ainda me lembro...Dizias que eu esqueceria, mas, hoje, passados tantos anos, eu ainda me lembro.
Ainda me lembro do teu rosto envelhecido debruçado sobre o verde replandecente do campo, o contraste da luz dos teus olhos com as ervas daninhas, o reflexo do teu sorriso no mais puro cantinho do céu.
Levavas-me pela mão, a tua mão calejada do trabalho, manchada da velhice, a mão experiente que conduzia na perfeição a minha meninice imatura.
Recordo-me que queria correr, e tu, já menos hábil, falavas-me das tuas pernas, das tuas frágeis pernas já incapazes de acompanhar o meu ritmo louco de menina que anseia descobrir o mundo a cada passo. Mas, lá ias atrás de mim e sempre que eu corria, lá estavas tu atrás de mim para me amparar as quedas.
O caminho parecia sempre tão longo para as tuas pernas cansadas de tanto percorrer o caminho da vida, mas para mim era sempre mais um passeio, uma descoberta, um mistério, um sonho.
Eu ainda me lembro...dos teus olhos cintilantes, do orgulho com que me olhavas, do carinho com que me aconchegavas junto do teu seio vivido. Eu ainda não esqueci que íamos junto da ribeira apanhar rosmaninho e erva ursa para colocar na fogueira.
A fogueira dos nossos sentimentos, aquela que saltei tantas vezes desafiando o fogo do amor que nos unia, a fogueira que anos mais tarde me queimou, que ainda me queima.
As tuas mãos sempre colheram o melhor rosmaninho, o mais colorido, o mais perfumado, aquele que encheria as minhas mãos da pureza que desejavas para mim.
Naqueles momentos sabia que me amavas, mais do que qualquer palavra, mais do que qualquer bilhete deixado ao acaso pela rua, eu sabia que me amavas por aquilo que era. Como se amam aqueles que são do nosso sangue, como se amam os filhos, amaste-me.
Depois de colhermos rosmanhinho e erva ursa, a fogueira da vida queimou-me os sentimentos, e hoje são apenas as minhas mãos que, por entre as ervinhas, procuram o rosmaninho mais perfumado, belo e puro para colocar junto da tua sepultura.
Recordo a tua voz, os conselhos, a mão carregada de sonhos, como se em cada pétala das flores que colhesses encontrasses um novo mundo a nascer dentro deste mesmo mundo.
Sabes...nunca mais apanhei erva ursa, nunca mais colhi rosmaninho para saltar a fogueira, nunca mais comi os bolinhos que só tu sabias fazer. Não, nunca mais... Porque há coisas que nunca mudam, porque há coisas que quando se perdem não voltam mais, ficam aqui, dentro do coração, onde tu também estás.
Todos os dias te vejo, ainda a apanhar o rosmaninho dos velhos tempos, aquele que parecia sempre transportar consigo o perfume da perfeição, da plenitude da minha infância onde não havia espinhos, não havia espadas, não havia punhais de dor inseridos profundamente na minha pele.
Não, não havia. Até partires o mundo pareceu-me perfeito.
Até ao último dia em que colhemos rosmaninho e erva ursa eu acreditei poder saltar a fogueira contigo. Hoje não, sei que por mais que o deseje, apenas poderei saltá-la sozinha.


Isa Mestre

terça-feira, julho 18, 2006

Sonhos Teus

Eu vim, naquela noite fria eu vim e tu ficaste.
Ficaste para montar as tendas em que dormiríamos nessa noite, ficaste para sonhar mais um pouco porque a mim o sono da escuridão já me cerrava os olhos por completo, ficaste para imaginar que terias filhos e construirias mundos ao lado de outra pessoa, ficaste para dizer os nomes dos garotos antes de adormeceres...
Mas eu não mais estaria, não voltarias a imaginar que sou essa pessoa pela qual esperaste tantos anos. Não o faças, porque eu não sou, não sou nem quero ser.
Não te disse adeus. Tu bem sabes como odeio despedidas...Afinal, para quê dizer-te adeus se amanhã seguirás os meus passos e trarás os teus sonhos para junto dos meus? Se amanhã quererás abraçar-me e dizer-me que vamos ter muitos filhos e uma casa grande para acolhê-los a todos? Eu sentir-me-ei pequeno outra vez, porque as minhas mãos estão vazias e tu insistes em enche-las com sonhos que não são meus, com vidas que nunca vivi, com alegrias que não existem no interior da minha rudeza.
Não quero magoar-te, afinal ainda és o fruto verde da àrvore madura e cansada do tempo, ainda és o amanhecer quando o pôr-do-sol já se estende sobre os meus horizontes longínquos.
Crescerás, habituar-te-ás a ver-me partir , a ver-me cobarde e incapaz de dizer-te que os teus sonhos não são os mesmos que os meus e que a vida que construiste nunca foi o alicerce que imaginei na minha casa do futuro.
Não te digo nada, porque como o meu pai dizia, o silêncio diz tudo aquilo que as palavras se revelam incapazes de expressar.
Por isso, quero que sigas em frente sem olhar para trás, sem imaginar a minha imagem a partir da praia da tua vida, sem as ondas do meu corpo a bailar sobre o teu, segue e não me procures, mas, por favor, também não me esqueças.
Pensa apenas que fui um episódio da tua vida, como nas novelas, como nos filmes em que acaba sempre tudo bem. Vem, finge que pões a cassete da tua vida e recorda-me, vee-me partir e pergunta-me porque vou, para onde vou, que mal fizeste. Vem, pergunta! Pergunta que eu permanecerei calado apenas para não te magoar, para não tolher da terra essas tuas raízes profundas e carregadas de vida.
Matar-te-ia se te retirasse os sonhos , por isso, prefiro morrer...sozinho, perdido, apenas com a tua imagem no pensamento.
Não sonharei que teremos muitos filhos, nem casas, nem luxo, nem sequer imaginarei ter-te a meu lado para o resto da vida, porque por agora bastar-me-ia ter-te aqui, no deserto de mim, onde não há sonhos, não há ambições, não há lutas...onde só existes tu, tu e mais ninguém.
Se vens para o meu mundo, deixa os sonhos do lado de fora da porta, tal como um saco de compras que repousa sobre a tapete da entrada, deixa-os! Porque os sonhos, tal como os sacos de compras são pesados, são demasiado pesados para transportá-los sempre comigo.

Isa Mestre

terça-feira, julho 04, 2006

Levo-te na alma

Eu vou, com asas de sonho, eu vou para longe.
Mas levo as nossas recordações comigo, levo a tua fotografia na minha carteira e o teu sorriso no bolso. Assim será mais fácil sorrir-te, como se nesta folha de papel fosses tu e não apenas o progresso do mundo espelhado na fotografia que trago comigo.
Levo-te, como nas manhãs em que caminhei solitária para o trabalho, sem ti, sem carinho, sem saber onde dormiste nem por que ruas vagueaste.
Só queria que me acordasses quando chegasses a casa, nem que fosse para dizer que estava tudo bem, para depositar um beijo nas minhas faces ainda coradas pelo calor eterno da almofada.
Mas tu não vieste. Nessa noite não vieste.
O nosso filho adormeceu com as minhas histórias, com a minha voz trémula de quem tenta disfarçar a dor e encontrar caminhos no deserto da solidão. E ele perguntou por ti...eu sorri-lhe timidamente e julgando enganá-lo, disse-lhe apenas: Vamos, querido, vai lavar os dentes, já é tarde.
E ele foi. Não voltou a perguntar pelo “papá”, pelo homem que se tornara um desconhecido no seio da sua própria família.
Quantas vezes me perguntara eu o mesmo que o nosso filho, meu amor....quantas?
Por onde andaste? Por onde andaste nas noites frias de Inverno? Por onde andaste quando o teu filho chamou por ti? Por onde? Por onde?
Não sei.
E agora ainda ouves a sua voz? Agora que cresceu, que se fez homem e construiu com as suas mãos os caminhos que se estendem diante do seu olhar.
Mas, hoje, ainda te chama. “Papá, papá....” , na sua voz de homenzinho, e chora timidamente na almofada, finge não sentir aquilo que ambos transportamos no peito: a dor.
A dor de nunca mais poder tocar-te, ouvir-te, sentir-te apertar-nos contra o teu peito.
Nessa noite tu não vieste, tu nunca mais vieste.
E eu não soube dizer-lhe onde estavas, para onde ias, porque não voltavas...não soube. Porque por vezes as mães não sabem tudo.
A vida respondeu-lhe...com o tempo, com o apaziguar da dor, com a saudade.
Sim, ainda hoje a vida sabe dizer-lhe onde estás.
E ele olha-me timidamente, aponta para o céu e sorri, como se ainda estivesses no cimo do nosso telhado a concertar as telhas.
Um dia havemos de escrever a tua história na areia da praia, a água virá e apagará todos os nomes, mas ficará a marca dos nossos dedinhos no coração do mundo, tal como ficaste em nós.
Amor, ainda espero que venhas, que me acordes e me digas que a noite foi terrível, ainda espero que me prometas que no dia seguinte não preciso esperar por ti, porque já lá estarás quando chamar pelo teu nome.
Espero mas não vens, sei que nunca mais vens.
Como naquela noite, como quando o teu corpo esqueceu a vida e sonhou para além dos nossos horizontes...quando eu não sabia onde estavas e morrias afinal sem um adeus, sem um “amo-te” que ficasse para sempre no meu olhar de menina.
Por isso, hoje eu vou, levo o nosso menino pela mão e vou em busca dos sonhos que perdemos quando partiste.
Sei onde estás. Estás aqui...entre mim e ele, no entrelaçar dos nossos dedos, nas batidas compassadas dos nossos corações, estás no meu bolso e na minha alma.

Isa Mestre

terça-feira, junho 20, 2006

Grito

Era menino, porém, não como tantos outros, com toda aquela magia e força de viver que a infância transporta.
Não, ele não.
Menino de cabelos claros e pele negra, queimada do sol, queimada da vida, queimada da fogueira de sentimentos que se cruzavam à sua volta.
Menino que nascera no seio de uma família triste e crescera no berço do desconsolo e da falta de amor, menino de olhos repletos dessa luz e da inquietação do espírito que não vive, sobrevive, da alma que não voa , apenas plana.
Desprovido de sentimentos ele caminhou, fez-se herói pela estrada do mundo, sofrendo a cada dia, escrevendo no caderno da vida as duras páginas do seu destino.
Até aquele dia, ao momento em que sorri e olhando para a minha garrafa de água lhe perguntei: Se esta garrafa fosse uma varinha mágica que transformasse todos os teus sonhos em realidade, que pedirias?
No ar pairou a magia dos meninos, daqueles que teriam pedido mundos...bonecos, carrinhos, cromos de jogadores de futebol, berlindes...mas ele não, ele, fazendo face ao meu sorriso repleto de alegria disse secamente: A morte.
Pedira-me a morte, e eu olhava-o com comoção, apetecia-me abraçá-lo, dizer-lhe que ficaria tudo bem, que o levaria para minha casa e juntos construiríamos um novo mundo para si, um espaço onde só a vida pudesse permanecer, uma alegria em que a tristeza da morte fosse meramente passageira.
Mas, permaneci calada, prisioneira de mim mesma, acorrentada ao sentimento de pena, rancor, ódio e raiva. Mas porquê? Porquê? Porque não crescera aquele menino como crescem tantos outros, no seio de uma família feliz, acarinhado por todos, amado , respeitado, educado pelas duras leis da vida...Porquê? Porque me pedia ele a morte com toda uma vida repleta de sonhos por viver?
Ou será que nesta vida insuportável a morte seria o alívio para todo o sofrimento? Não sei.
Mas ele pediu a morte, um menino de tenra idade pediu o final da vida ainda no seu início.
Apeteceu-me gritar ao mundo, gritar amargamente com a voz daquele menino, gritar ao “Papá” e à “Mamã” que há um filho para criar, uma semente a crescer no jardim da vida, uma semente na qual é preciso fomentar alegria, carinho, orgulho, uma semente forte que um dia será o tronco da árvore do futuro.
E porque não crescera ele como todas as sementinhas do jardim da vida? Porque houve ódio, incompreensão, desprezo, houve alguém que trocou o próprio fruto que gerou pelo desejo de amar e ser amada, alguém que preferiu sorrir ao invés de ver sorrir aqueles que são grande parte de si, alguém que enquando deveria ter-lhe passado a mão pela cabeça e dizer-lhe que ficaria tudo bem, vagueava perdida e vagabunda pelas estradas errantes da vida.
E agora, ali estava o fruto da dor, da dor que mata e fere os corações dos inocentes, e esse fruto era o menino de pele escura e olhos profundos, o menino que perante tanto sonho desejou apenas morrer. Ouviram? Morrer.

Isa Mestre