segunda-feira, setembro 17, 2007

Ensaio

Será que ficámos escravos do silêncio? Será que se calaram todas as vozes que ontem disseram as palavras mais belas do mundo, os sentimentos mais puros, os mais nobres e sinceros.
Porque hoje, chamo por ti e não há vozes que me respondam do outro lado da vitrina, não há o teu sorriso de menino nem os teus olhos doces de homem.
Fugiste de casa, disseram-me os teus pais, num ar de crueldade e indiferença, como se, de repente, deixasses de ser assunto deles para te arquivarem junto das coisas que nos metem medo, junto dos fantasmas loucos das nossa mentes, nessa caixinha profunda e triste, nesse secreto baú que todos insistimos em ocultar o nome.
Mas eu sei e eles sabem. Nós sabemos que esse baú guarda todas as horas que passámos juntos e todas as memórias para, mais tarde, agrupá-las com o rasto da desilusão.
Embora eles insistam em dar-lhe outros nomes, aquilo que guardam dentro do peito é a revolta e a tristeza de quem te acolheu carinhosamente nos braços e te viu partir, como pássaro que voa sem rumo.
O que sentem é a revolta de dois seres que não se prepararam para o facto de a vida nos impor determinadas escolhas, de a vida nem sempre ser aquilo que esperamos que ela seja.
Com olhos húmidos e expressão amargurada falam-me do dia em que lhes ensinaste que a tolerância talvez seja o valor mais importante da vida.
- Pai, sou homossexual.
É assim que o teu velho repete a frase que ainda ecoa dentro do seu coração, a frase que fere, que magoa, a frase que marca e que mata pela sua diferença, pela sua inevitabilidade. E como se ainda estivesses diante dele, a mesma cara de surpresa, o mesmo olhar de reprovação, as mesmas perguntas a ressoar dentro do coração, os mesmos som repetidos tantas vezes, tantas vezes…
Os seus olhos inundados de culpa a querer chamar-te,
- Paneleiro de merda,
A querer dizer-te que sejas igual a todos os outros, a querer mostrar-te que tudo pode não passar de uma incerteza tola, os seus olhos ainda a desejar querer abraçar-te e acreditar que tudo não passa de uma mentira.
Há nele o maior peso que transportamos para o mundo: a culpa.
A culpa por não ter sido um pai mais presente, por não te ter ensinado a jogar à bola e a brincar com carrinhos, por não te ter levado às meninas e amestrado a beber cerveja como um verdadeiro homem.
Tolice pensar que podemos evitar as nossas próprias escolhas, delimitar outros caminhos senão aqueles que nos pertencem.
Depois, as lágrimas na face da tua mãe. A tristeza da mulher que já esqueceu a desilusão da diferença e que acredita poder voltar a ter-te do seu lado.
Mas tu partiste. Não lhes ensinaste a lição, não lhes provaste que na vida há que aprender todos os dias, e sobretudo, há que aprender com a diferença, com a excepção. Fugiste. Foste cobarde, incapaz de enfrentar as dificuldades que se atravessaram no teu caminho.
Hoje, tropeças nas memórias que te prendem a casa, encalhas na palavra mãe e descem-te as lágrimas pelo rosto quando ensaias o vocábulo pai. Um dia hás-de cair, porque ninguém segue de cabeça erguida, sem cair pelo menos uma vez na vida.
Volta atrás. Ensina-os a tolerar e ensina-te a perdoar. Corre, luta, grita, salta, ama. Mas nunca sejas cobarde ao ponto de fugir.

Isa Mestre