sábado, dezembro 15, 2007

Deixa-me sorrir-te

Deixa-me ser o teu olhar para percorrer todos os sonhos e pousar as tuas asas nos meus braços, deixa-me ser a tua voz para ecoar pela minha casa enquanto me chamas com palavras doces e gestos infantis, deixa-me ser as tuas mãos quando está frio e se entrelaçam nas minhas num jogo de ternura.
Deixa-me ser aquilo que és só para poder voltar a ter-te do meu lado.
Caminho pela casa e sento-me no chão, como se diante de mim ainda se estendessem os teus olhos ternos, a tua doçura e a delicadeza de quem segurava sempre um livro entre as mãos, um livro chamado tempo, uma história chamada vida.
Hoje, por mais páginas que passe jamais conseguirei encontrar o parágrafo em que os nossos lábios se tocaram, a frase em que os nossos corpos se abraçaram, a palavra em que os nossos olhos se contemplaram quase a desejar ser felizes.
Talvez não existam páginas repetidas no livro da vida, talvez cada história seja única e os meus dedos estejam apenas cansados de procurar…talvez sorria às estrelas, agradecendo o dia em que me olhaste e me fizeste sentir pérola num mar de sonhos ancorados.
Não te chamo mais. Ainda que quisesse não saberia como fazê-lo. Conheço-te os traços do rosto, as rugas das mãos, a profundidade do olhar e a sensibilidade do toque, mas desconheço-te o nome.
Quem sabe um dia tento uma palavra vulgar, um nome gasto, mas hoje não, hoje és demasiado especial para perguntar-te algo tão banal como um amontoado de letras que se acredita poder definir alguém.
Por agora, fico apenas no silêncio esperando um ruído. Passos. Vozes. Campainha. Tu?
Não desejo mais nada, não desejo mais ninguém.
Deixa-me ser os teus pés para te guiar até mim…

Isa Mestre

sábado, dezembro 01, 2007

Palavra em Branco

Há pessoas que ainda antes de sorrir já nos pertencem.
Já lhe conhecemos a expressão dos olhos e os contornos suaves dos lábios, os caracóis rebeldes e a calma valsa das mãos sobre a mesa.
- O teu trabalho é escrever-me,
Disseste-me, então.
E eu, que até aquele dia queria ser escritora, desisti de colocar-te em palavras, por ter a perfeita consciência que as coisas mais belas da vida serão sempre impossíveis de escrever.
Olhei-te até ao sorriso, até à exaustão (se é que os meus olhos se cansam de te olhar)…
E por momentos, existiu entre nós o silêncio da distância entre o pintor e a sua tela.
Apenas a tua voz,
- Escreve-me.
Como as telas diziam a Picasso,
- Pinta-me.
E eu a ser incapaz de encontrar um adjectivo decente, um adjectivo que te faça sorrir e pensar o quão tola sou, enquanto me pedes que rabisque um papel.
Há mulheres a quem pagas por horas de puro prazer, pelo desejo de carne contra carne. A mim, contratas-me para que te escreva.
E serei eu mais digna que aquela que se despe diante de ti, em outras ocasiões? Será que não me dispo também, em palavras profundas e gestos escondidos?
Estou nua e nem me consegues apreciar.
Estás demasiado preocupado com os vocábulos que procuro para te adornar a alma, para te fazer mais homem.
Recorda-te dos reis que mandavam pintar retratos. Tu mandas-me escrever-te.
Despes-me. Roubas-me a alma. Tentas ensinar-me o que é o amor, quando eu nunca conseguirei escrevê-lo, porque nunca conseguirei escrever-te a ti. És o amor. E o amor é uma palavra em branco.

Isa Mestre

domingo, novembro 18, 2007

O outro em ti

Encosto o nariz contra o espelho e vejo-te do outro lado, e a mãe sempre a dizer:
- tem cuidado, não vás para longe,
E tu a distanciar-te cada vez mais de ti, a ficar cada vez mais próximo do outro que não te pertence.
Um dia olhar-te-ás ao espelho e não te reconhecerás, porque na verdade, não será a tua imagem reflectida, não serão esses teus olhos brilhantes de criança que nos faziam lembrar estrelas em noites de Verão.
Não te percas,
Não vais para longe,
Sempre a minha voz a perseguir-te, a pedir-te que fiques e sejas feliz, a mostrar-te que a loucura reside em nós mesmos.
Talvez outros se tenham olhado nesse mesmo espelho e pensado o que pensas agora, talvez outros tenham pesado as vitórias e as derrotas, acreditando que isso pode determinar quem sai vencedor ou vencido do duro jogo da vida.
E tu permaneces estático em frente a um espelho de um hotel qualquer, numa cidade qualquer onde te olham como se fosses um bicho (onde tantas vezes te perguntas se não somos, afinal, todos bichos). Paraste apenas para retocar o cabelo, ajeitar o visual, e agora…olha para ti! Que fazes? Interrogaste-te? Pensas? Sonhas? Choras ou sorris?
Será que sabes quem és (será que sabemos quem somos, afinal?)?
Desconheces agora as causas que te impedem de prosseguir, que te acorrentam os pés à tua própria existência como se aquele momento fosse a confirmação completa de que não somos absolutamente nada.
Por instantes recordas as palavras da mãe (não vale a pena esconder, sei que as recordas), pensas no seu olhar doce, no gesto terno, no sorriso afável.
Não és o primeiro nem serás o último. Também eu já sorri ao espelho tentando encontrar a alegria de mim, já me perguntei quem era por me julgar tantas vezes incapaz de me encontrar, já parei e pensei, já escrevi histórias de amor, como as que escreves agora.
As palavras saltam-te da alma e acreditas-te louco, pensas que será a última coisa que fazes porque dali a nada todos te acharão demasiado ridículo para casar e ter filhos, para contar histórias de encantar e embalar berços de meninos.
Cogitas sobre o quão inútil te tornaste, despes o fato do outro que há em ti e vês-te nu ao espelho.
Será que algum dia te vais encontrar? Será que alguma estrada te poderá indicar qual o melhor caminho a seguir?
Tem cuidado, não vás para longe. Não te sintas perdido, pois só se perde quem há muito desistiu de se encontrar.

Isa Mestre

sexta-feira, outubro 19, 2007

Pedaços de Mim

O teu cheiro ainda na minha almofada. Passados tantos anos. O teu cheiro ainda na minha almofada. Como se tivesses acabado de acordar de uma folga de verão, como se tivesses acabado de abrir os teus olhos de menino, dizendo-me ainda que me amas.
E, de repente, é tudo mentira. Tu já não estás, os teus lábios já não me dizem de cor as palavras que o coração anseia ouvir. Procuro-te nos corredores gelados da minha solidão e encontro-te na cama de outra, enquanto lhe chamas meu amor, afagando-lhe os cabelos contra o peito, enquanto lhe dizes que a amas, como outrora me disseste, enquanto esqueces que um dia foi nessa cama que estiveste deitado comigo, de barriga voltada para o sonho de casarmos e ter filhos. E eu a pensar que palhaço te tornaste, eu a pensar como queria que fosse a mim que abraçasses, que fosse o meu nome que dissesses todos os dias, eu a pensar como eram felizes os dias em que o meu nome era tudo, em que o teu nome era um mundo a girar em volta do meu corpo.
Eu a chamar-te tolo, mas, no mais profundo de mim, a amar-te como desde o primeiro dia em que me apaixonei, a amar-te ainda como naquele olhar em que me pediste uma caneta, a amar-te ainda como no calor do nosso primeiro beijo, a amar-te ainda como se nenhum outro pudesse preencher o teu lugar.
E, no entanto, todos nós a sabermos que é mentira, todos convictos que um dia destes haverá outro coração a bater em compasso, outro olhar a devorar-me por dentro, outro sorriso a ensinar-me a sorrir.
E tu sabes, tu hás-de saber sempre disto. Por isso, ouve bem esta frase, porque quando nos falta coragem para falar, escrevemos.
Existirás em tudo.
E tu sabes que sim. Existirás na saliva dos beijos que trocarmos, nas promessas que lhes fizer, jurando-lhes amor eterno, existirás nos gemidos de prazer, enquanto eles se julgam poderosos, existirás nas verdades e nas mentiras, nas dúvidas e nas certezas. E quando o meu corpo pousar sobre o deles, a minha alma há-de procurar na tua recordação a certeza de jamais poder amar outro homem como te amei a ti.
Mas, mesmo assim, fingirei. Hei-de passar toda a minha vida a fingir.
Fingir que esqueci, que as horas passadas debaixo do cobertor dos sonhos foram apenas espigas levadas pelo vento, fingir que quando o teu olhar se cruza com o meu não há nenhuma voz que me diga baixinho,
- amo-te,
Como repito para o espelho, acreditando que me vês,
- amo-te,
Como me disseste à porta do elevador num dia de Outono,
- amo-te,
Como quando partiste e me deixaste com os cacos de uma palavra desfeita a fugir-me por entre os dedos das mãos.
Sabes o que dói mais? É não saber como colar as peças partidas.

Isa Mestre

quinta-feira, outubro 11, 2007

Choveu dentro de mim

Choveu tanto nessa noite. Choveu demasiado nessa noite. Talvez, se não tivesse chovido tanto, as gotas do teu coração não inundassem o meu como que impregnando-se em cada parte do meu corpo, como que sendo minhas a casa instante.
Hoje, quero sacudir as roupas e pingo por todos os lados. Dizem-me que cheiro a ti, que tenho ainda o teu perfume preso no meu pescoço, a tua boca suavemente encostada ao meu ouvido dizendo-me que me ama. Quero fugir. Corro, corro. Mas para onde ir? Se estás em cada momento, se os teus lábios me perseguem como se me beijassem levemente os ombros depois de fazermos amor.
Imagino-te de pés descalços e camisa encharcada a percorrer-me a casa, a procurar duas chávenas de café bem quentinhas para me acolheres junto ao leito, para me calares esta voz que me diz que não posso ser tua, quando já te pertenço.
E ele lá fora. Ao frio, à chuva, ao vento. Ele que foi buscar os miúdos à escola e lhes preparou o jantar, ele que ligou vezes infinitas, procurando a mulher com quem casou. Procurando quem já não sou.
De um lado para o outro, caminha freneticamente pela rua. Imagino as vezes que terá ligado para o escritório, para a minha mãe, para a minha irmã…imagino as imagens que lhe atravessam a mente e quero voltar. Mas tu estás aqui, como lama presa nos meus sapatos, tu permaneces imóvel e apaixonado, risonho e astuto. E pela primeira vez na vida, tenho a certeza de nunca mais poder voltar a amá-lo como te amo a ti.
Fico calada. As minhas palavras denunciariam a paixão e afinal quem sou eu para sonhar? Eu que tenho os sapatos sujos de lama, que estou submersa na infidelidade de quem usa aliança no dedo e tem o coração amarrado pelos traços do destino.
Aqui, na tua cama, deixo de ser a mãe, a esposa que faz o jantar, que passa a ferro e lava a loiça, deixo de ser a menina de sorriso aberto que casou com o arquitecto bem sucedido, para ser apenas tua. Somente tua.
E, por vezes, o que parece tão pouco significa tanto dentro de nós.
Fico mais um pouco. Vou fingir que esqueço que os miúdos chamam por mim, vou fingir que sou feliz com a vida que tenho lá fora. E quando sair deste quarto, vou deixar-te um bilhete na mesa-de-cabeceira. O que dirá não sei. O que farás depois disso apenas tu poderás saber.

Isa Mestre

segunda-feira, setembro 17, 2007

Ensaio

Será que ficámos escravos do silêncio? Será que se calaram todas as vozes que ontem disseram as palavras mais belas do mundo, os sentimentos mais puros, os mais nobres e sinceros.
Porque hoje, chamo por ti e não há vozes que me respondam do outro lado da vitrina, não há o teu sorriso de menino nem os teus olhos doces de homem.
Fugiste de casa, disseram-me os teus pais, num ar de crueldade e indiferença, como se, de repente, deixasses de ser assunto deles para te arquivarem junto das coisas que nos metem medo, junto dos fantasmas loucos das nossa mentes, nessa caixinha profunda e triste, nesse secreto baú que todos insistimos em ocultar o nome.
Mas eu sei e eles sabem. Nós sabemos que esse baú guarda todas as horas que passámos juntos e todas as memórias para, mais tarde, agrupá-las com o rasto da desilusão.
Embora eles insistam em dar-lhe outros nomes, aquilo que guardam dentro do peito é a revolta e a tristeza de quem te acolheu carinhosamente nos braços e te viu partir, como pássaro que voa sem rumo.
O que sentem é a revolta de dois seres que não se prepararam para o facto de a vida nos impor determinadas escolhas, de a vida nem sempre ser aquilo que esperamos que ela seja.
Com olhos húmidos e expressão amargurada falam-me do dia em que lhes ensinaste que a tolerância talvez seja o valor mais importante da vida.
- Pai, sou homossexual.
É assim que o teu velho repete a frase que ainda ecoa dentro do seu coração, a frase que fere, que magoa, a frase que marca e que mata pela sua diferença, pela sua inevitabilidade. E como se ainda estivesses diante dele, a mesma cara de surpresa, o mesmo olhar de reprovação, as mesmas perguntas a ressoar dentro do coração, os mesmos som repetidos tantas vezes, tantas vezes…
Os seus olhos inundados de culpa a querer chamar-te,
- Paneleiro de merda,
A querer dizer-te que sejas igual a todos os outros, a querer mostrar-te que tudo pode não passar de uma incerteza tola, os seus olhos ainda a desejar querer abraçar-te e acreditar que tudo não passa de uma mentira.
Há nele o maior peso que transportamos para o mundo: a culpa.
A culpa por não ter sido um pai mais presente, por não te ter ensinado a jogar à bola e a brincar com carrinhos, por não te ter levado às meninas e amestrado a beber cerveja como um verdadeiro homem.
Tolice pensar que podemos evitar as nossas próprias escolhas, delimitar outros caminhos senão aqueles que nos pertencem.
Depois, as lágrimas na face da tua mãe. A tristeza da mulher que já esqueceu a desilusão da diferença e que acredita poder voltar a ter-te do seu lado.
Mas tu partiste. Não lhes ensinaste a lição, não lhes provaste que na vida há que aprender todos os dias, e sobretudo, há que aprender com a diferença, com a excepção. Fugiste. Foste cobarde, incapaz de enfrentar as dificuldades que se atravessaram no teu caminho.
Hoje, tropeças nas memórias que te prendem a casa, encalhas na palavra mãe e descem-te as lágrimas pelo rosto quando ensaias o vocábulo pai. Um dia hás-de cair, porque ninguém segue de cabeça erguida, sem cair pelo menos uma vez na vida.
Volta atrás. Ensina-os a tolerar e ensina-te a perdoar. Corre, luta, grita, salta, ama. Mas nunca sejas cobarde ao ponto de fugir.

Isa Mestre

sexta-feira, agosto 10, 2007

Meio dia e um quarto

Gosto quando me perguntas se quero sair. Gosto de querer dizer não, de sentir que sou capaz de ir contra a vontade do próprio coração para ensinar a mim mesma uma lição de dignidade. Gosto quando no visor do meu telemóvel se desenham as letras do teu nome.
Nunca tive oportunidade de dizer-te, mas adoro as letras do teu nome.
Sabes, talvez seja esta a parte de mim que gosta de ti.
Vou. Com aliança no dedo, com fotografias a encher-me o quarto e a alma, vou com lembranças de todos os momentos, vou na certeza de amar outro e querer-te só a ti.
Disseste-me que tomaríamos um café, quem sabe trocaríamos dois dedos de conversa numa esplanada qualquer… E eu queria dizer-te que adoro a forma como me olhas, adoro o verde desses teus olhos luminosos, que de noite, parecem dois semáforos que se acendem, mostrando-me, que no amor, tal como na vida, nem tudo é proibido.
Chegaste.
Olho-te. Escondo o olhar. Penso. Sonho. Fujo. Quero fugir. Mas a ideia vem novamente.
Quem me dera poder beijar-te.
Que loucura! Não quero. Não posso. O meu coração não te pertence, há algo que me diz que amo alguém, que alguém me ama, do outro lado, onde não há fronteiras, mas existem nuvens cinzentas depois da poeira dos sonhos. Porque contigo, todos os dias parecem incrivelmente risonhos, porque a teu lado todos os cheiros nos pertencem, todas as cidades nos deambulam entre os dedos das mãos.
Falamos sobre coisas banais. Eu finjo não sentir o que sinto, para deixar de ser quem sou, tu, sorrindo, dando-me a ilusória sensação que brincas com a expressão do meu rosto, dizes baixinho o nome dele.
Como se todas as coisas se acendessem, como se todas as memórias se dispusessem lentamente na mesa onde tomamos café. Apetece-me lançar os braços, agarrar algumas memórias, apetece-me que passem cinco anos, apetece-me estar sentada contigo outra vez, acariciando-te os dedos enquanto te digo,
- Fomos felizes,
Apontando para a memória do outro a quem pertence o meu coração.
E tu sorris. No mais profundo de ti, sabes que te adoro, que desde o primeiro dia houve algo mais que companheirismo e alegria.
Sabes que quero beijar-te e não posso, que quero sorrir-te e me falta liberdade para tal.
Sou tua e não te pertenço. Será sempre assim. Porque nada nos dá a liberdade de magoar quando nunca fomos magoados.

Isa Mestre

segunda-feira, junho 25, 2007

Esboço de Partida

Seria triste dizer-te adeus, pensei na hora da partida. Seria triste dizer adeus a todos os passos, a todas as escadas que subimos juntos, a todos os bancos onde nos sentámos, a todas as nuvens onde pousámos os nossos sorrisos. Seria triste sorrir-te com lágrimas para te dizer que vou para mais uma etapa, que vou em busca dos mesmos sonhos que trouxe debaixo do braço, como espiga levada pelo vento.
Ainda ontem a aragem doce dos sonhos nos tolhia os rostos assustados de meninos e hoje é o vento de norte a embalar-me os passos, a dizer-me que não posso mais ficar, a provar-me que as minhas pernas se tornaram demasiado pesadas para o caminho a percorrer.
Separam-nos duas portas, dois mundos, duas vidas…separam-nos um adeus e um até já que nunca serei capaz de pronunciar. Mentir-te-ia em ambos os casos, e tu bem sabes, que nas artes da falsidade careço de engenho e perícia.
Mas, afinal, nada muda quando os sonhos permanecem no lugar da memória.
Deixa os teus livros em cima da mesa, amanhã outros olhos olhar-te-ão atentamente, outras mãos buscarão as tuas procurando antídoto para os males do mundo, outros pensamentos se cruzarão com a tua vontade de viver.
Talvez amanhã te lembres de mim, do rosto vago e indefinido por entre os semblantes da multidão, do sorriso maroto e do gesto indelével demarcado no teu coração.
Nunca te direi adeus, nunca caminharei solitária pelo corredor que nos separa para te dizer aquilo que trago junto ao peito. Amanhã, quando perceberes a minha ausência, tenho a certeza que te recordarás dos silêncios entre uma e outra conversa, das pausas amistosas entre sorrisos, e nesse momento, não precisarás de palavras para saber que te adoro.
Vejo-te ainda ao fundo, tento erguer a mão, esboçar algo parecido com um gesto de partida, mas, de pronto, o coração diminui-me os braços para me encher a alma, encolhe-me os dedos para me esticar o sorriso.
Como se diz adeus, quando queremos ficar?
Se ao menos pudéssemos aprender tudo na escola…

Isa Mestre

quarta-feira, abril 11, 2007

Irmãos do Sonho

Agora a vida é a sério, chama por nós, estica-nos as mãos e espera que as agarremos com toda a força do mundo.
Recordo ainda a voz do pai,
- Um dia a vida será a sério.
É verdade. E nós a pensar que esse dia nunca mais chegaria, que seríamos sempre garotos debaixo das asas do nosso pequeno herói, protegidos pela força do amor que nos unia, nós a pensar que eram tudo palavras soltas no tempo, palavras de pai para ouvidos de filho, palavras de uma alma madura para uma semente em crescimento.
Depois, a vida fez-nos crescer e cresceu connosco.
No rosto do pai há ainda os meninos que fomos ontem, as pedrinhas lançadas em ricochete na ribeira, as fisgas arremessadas à lata pendurada no arame farpado das nossas vidas. Nas suas mãos, ainda os espinhos de uma existência sofrida, as marcas profundas na pele, o desejo de abraçar-nos novamente e sentir os seus dedos de encontro aos nossos.
Onde estamos, meu irmão?
Longe, longe. Como se nos separassem rios distintos, margens intransponíveis, livros onde se escreve o que somos e o que sentimos, ainda que os capítulos sejam intermináveis e repletos de palavras vagabundas.
E o coração, onde o deixámos? Ou será que nos tornámos meras peças de fábrica, produzidas em série?
Que tens tatuado no peito? O amor que nos acolheu ou o frio da ausência que nos mata? Que tens tatuado no peito?
A minha pergunta a percorrer o quarto, a soltar-se pela cidade, a voar em busca dos teus olhos sôfregos e ambiciosos…e lá no fundo de mim, novamente a voz suave, os olhos ternos, o sorriso franco e o gesto alegre,
- Um dia a vida será a sério,
E novamente o teu olhar de miúdo, os braços pequeninos e as mãos singelas, novamente a tua voz de quem quer ser homem assim que a vida lhe permita tamanha ousadia,
- Sim pai, sim pai…
E o pai quase a fingir que acredita que entendeste a lição, quase a virar costas e a sorrir, imaginando-nos homens feitos e de barba rija. Quase.
Afinal, passados tantos anos e tanta vida ainda somos uns meninos.
A infância não cai nem morre, simplesmente, por vezes esquecemo-nos de lembrá-la, e é isso que provoca em nós a ilusória sensação de nos imaginarmos maiores do que somos na realidade.
Um dia a vida será a sério, ouviste?

Isa Mestre

sábado, março 03, 2007

Errante

Não posso calar a tua voz, não posso.
Tu a dizeres que tenho culpa, que nunca deveria ter sido como fui, que nunca deveria ter feito todas as coisas que fiz, que nunca poderia ter existido na tua vida.
Desculpa. Pudesse eu voltar atrás, mudar o rumo dos sonhos, enveredar por uma outra estrada estreita senão aquela em que nos conhecemos: a estrada da vida. Garanto-te que tudo seria diferente. No meu lugar haverias de ter uma rapariga de sonhos firmes e flores presas no cabelo, uma menina que acreditasse que o amor é terno e te fizesse acreditar nisso mesmo.
E agora, que queres fazer? Se eu naquele dia enveredei pela estrada onde também caminhavas com passos firmes e olhar perdido, se eu naquele dia me apaixonei por esse sorriso de menino vagabundo e aventureiro…
Que queres fazer? Matar a verdade, matar os dias como julgaste matar os sentimentos que tens dentro do peito?
Insistes. Não posso calar a tua voz, não posso.
Porque as minhas mãos são frágeis e o meu coração ainda quer se o bilhetinho colado no armário dos teus amores, porque os meus dedos ainda acolhem o pedaço de ouro que me deste em troca de amor e fidelidade.
Não posso matar a culpa, afastar as palavras que um dia te feriram e magoaram. Fui eu. O juiz a perguntar quem é inocente e quem é culpado e a minha voz lá no fundo do teu espírito,
- Fui eu,
Acuso-me. Fui eu. Repito. Fui eu.
Que se passa? Porque te levam a ti? Porque te algemam a vontade de viver e te condenam à grilheta?
Tu gritas. E eu não posso calar a tua voz.
Como te disse, conhecemo-nos na estrada errada. Oxalá esse teu sorriso maroto se tivesse cruzado com os meus olhos ávidos de carinho numa estrada mais longa, onde a vida nos permitisse ser mais do que somos, onde a vida te deixasse ser meu por mais alguns instantes.
Desculpa se te magoei, mas não quero fingir. Não posso.
Acorrentem-me os braços, amordacem-me para não chamar mais pelo teu nome, limpem-me as lágrimas do rosto e coloquem-me a tua imagem junto ao peito. Depois…a vida saberá o que fazer comigo.

Isa Mestre

sábado, fevereiro 17, 2007

Loucura

Podes tirar o penso da ferida. Eu já sei que existe dor, que há sangue que jamais poderei estancar, já sei que os teus braços e as tuas mãos correm desesperadamente atrás de um mundo que te foge, que me foge, que nos foge.
Não te quero curar as feridas. Não tenho palavras que nos unam, sentimentos que nos façam um do outro, como o mar pertence à terra, como a luz pertence ao dia. Não tenho uma história que te torne meu, porque estendo as mãos e não te sinto a pele, mas sim o vazio das manhãs frias em que te procurei na neblina da madrugada.
Eles dizem que não existes, que és fruto desta árvore que vive em mim, deste mundo de fantasia que tinge as paredes do meu quarto de mil cores e de mil sons.
Eles a dizer,
- É mentira.
E tu dentro de mim, a tua voz em sussurros repetidos,
- Estou aqui.
E eu a saber que estás, a querer olhar mais para dentro de ti, até te ver por completo, até sentir que o teu peito bate com a precisão dos ponteiros do relógio da minha alma.
Ás vezes apetece-me tocar-te, trazer-te pela mão para dentro do meu mundo, ensinar-te cada rosto, cada expressão, cada palavra, cada pessoa que me habita.
E quando eles me levam para os consultórios e me chamam louca, apetece-me dizer-lhes que olhem para ti, porque existes em cada um deles com a mesma alegria e plenitude com quem vives no meu corpo.
Recordo os relatórios pousados sobre a mesa dos homens robustos e de pele queimada pelo tempo, sempre as mesmas letras esquecidas no papel, as letras perdidas entre ti e mim,
- Alienação mental com modificação profunda da personalidade,
Que verdade é esta? A que mentira nos propõem?
Não me chega dizer que sei quem sou, eles querem mais, eles continuam a procurar o teu rasto, como felinos com olfacto apurado e olhos bem abertos na escuridão da noite, eles perguntam,
- Quem vive dentro de ti? ,
E eu respondo com o silêncio. Não me vendo por respostas fáceis, não me deixo comprar pelas ilusões que a vida já me proporcionou. Não sou criança. Antes o fosse…mas não sou .
Calem-se todas as vozes. Porque se minto, o silêncio responderá em meu nome, e se digo verdade, apenas uma voz se unirá à minha para cantarmos a mesma canção.
Escutem! Ouço passos ao longe. Será que és tu, ou o médico que me julga louca?
Apenas um dos dois. Tal como no mundo. Apenas uma escolha. Apenas um destino. Apenas uma vida para uma morte.

Isa Mestre

quarta-feira, janeiro 31, 2007

Emboscada



Caminho pela rua, não sei quem sou.
Chamam-me. Não olho para trás, porque mesmo que o alcatrão me prenda os pés, jamais poderá algemar a minha força de viver, a minha vontade de seguir pela estrada fora e desenhar novos rumos.
Chamam-me. Nas vozes cansadas do tempo, nos acordes perfeitos da vida…apenas o meu nome segredado no ouvido do mundo,
- Rodrigo,
O meu nome a percorrer todas as vozes e a ser todos os corpos,
O meu nome a sorrir e a sonhar,
O meu nome a cair,
O meu nome repleto de sangue,
O meu nome a morrer,
- Rodrigo,
Como da última vez que me chamaste.
- Rodrigo,
Como quando a minha mãe disse à enfermeira que nome me daria.
Mas eu não sei quem sou.
Não olho para trás, não sou esse amontoado de palavras soltas que me percorre e me atinge, que me toca e me mata.
Estou cego. Serás que não vês? A raiva cegou-me os olhos, amarrou-me as mãos atrás das costas e deixou apenas o silêncio dos dias frios.
Depois, segredou-te ao ouvido que viesses à minha procura, que viesses atrás de mim como as mães correm atrás dos filhos no parque.
Hoje, chamas-me e nada sou, porque a tua voz é a raiva que tenho no peito, o punho cerrado dentro do coração, a lágrima perdida no labirinto do sentir.
A tua voz cada vez mais forte,
- Rodrigo, Rodrigo,
E eu quase a ceder, quase a parar, quase a admitir que sou eu, mesmo que queira fugir e dizer que não sei, eu quase a ceder…quase.
Oxalá pudesse perguntar-te por onde andaste todo este tempo, que caminhos percorreste, que vidas viveste, que amores acolheste no teu seio. Mas, a estrada é longa e espera por mim, as mochilas repletas de sonhos são pesadas e empurram-me para o mais fundo da terra.
Não me peças que te espere. Cala essas palavras de desespero que não são mais que réstias de compaixão, tal como migalhas que marcam o caminho de regresso.
Diz o meu nome ao silêncio. Apenas ele te responderá, apenas ele saberá de onde venho e para onde vou. Porque o silêncio é o que sou e o que sinto.

Isa Mestre

sábado, janeiro 13, 2007

A Palavra

Leio-te nos lábios. As tuas palavras falam de amor.
Amor?
Que palavra é essa? ,
perguntam os filhos aos pais ao final do dia.
Os olhos impacientes dos meninos que te ouviram na rua a pregar uma doutrina em que já ninguém acredita… os olhos dos meninos em busca de algumas palavras no seio dos corações.
- O que é o amor, papá? ,
Pergunta ele.
E o senhor fica calado. Tu bem vês o seu silêncio camuflado por detrás da vergonha, da face séria e comprometida.
- Não é nada filho, esquece o que diz aquele senhor.
Seria tão mais fácil esquecer… Tu bem sabes que é isso que todos eles querem. Esquecer que há mundo, que há sentimentos que nos prendem como amarras profundas, que nos prendem e nos sufocam.
Porque, na verdade, vivemos para amar, e essa é uma realidade para a qual nunca estaremos verdadeiramente preparados. Porque amar é uma tarefa dura e as nossas pernas estão cansadas de percorrer o espaço vazio.
Mas, a tua pergunta continua a ecoar no coração do menino. È impossível esquecê-la, porque ele ainda tem dentro de si todos os “porquês” do mundo, todas as palavras desconhecidas e todos os lugares nunca antes vistos.
Porém, o papá nunca lhe negara responder às suas perguntas, o papá nunca lhe dissera que esquecesse.
O menino, na sua voz rouca e inocente, insiste na palavra de cinco letrinhas,
- O que é o amor, papá?
E tu bem vês… O senhor a pegá-lo por um braço, a sacudi-lo num gesto de reprovação, a dizer-lhe baixinho, evitando o escândalo denunciado,
- Bem te disse para não falares com estranhos! ,
E novamente a voz do miúdo, num sussurro,
- Mas…papá…
Pobre menino.
Ele apenas queria saber o que era o amor, o que foi um dia…
Mas, há quem se envergonhe de sentir, de responder com alegria e firmeza face à inocência de um menino. Há quem cale o sentir por detrás da voz sumida, mas se esqueça que tu sabes ler nos lábios.
Amor? Que palavra é essa?
Muitos hão-de perguntar-se, muitos hão-de encontrar respostas sem sair do mesmo lugar.
Muitos hão-de descobrir o que é o amor, tal como o menino que olhou para dentro de si e sorriu.

Isa Mestre

domingo, janeiro 07, 2007

Músicos do Tempo

Subitamente as minhas mãos que se agitam, os meus dedos a mover-se como se diante de mim ainda estivesse o piano onde tocámos tanta vida e construímos tantos sonhos.
Sabes…só hoje entendi que nunca soube tocar piano. Que as minhas mãos não foram mais que instintos do coração, movimentos da alma, sorrisos de dentro do mais profundo de mim.
Eu não sabia tocar piano, eu sabia tocar profundamente nesse coração gelado pelo tempo, pela mágoa e pela dor.
Hoje, sento-me sozinho ao piano e as mãos são analfabetas nessas teclas cansadas do meu olhar ingénuo e perdido.
Onde estão as partituras do nosso amor? Onde?
Perdidas pela casa onde já não existo, onde os meus passos se perdem na tristeza de viver sem ti? Onde?
Escondidas por detrás desses muros altos a que chamamos de solidão? Para além dessa fronteira de estradas e caminhos que nunca percorri?
Oxalá pudesse ir buscá-las, reaprender a tocar essa melodia tantas vezes repetida no silêncio inócuo dos nossos dias.
Mas não posso. Tu sabes que não posso.
Porque ainda gritas lá longe,
- Fica.
Eu fico, não te preocupes, eu fico com a tristeza semeada no lugar do amor, com algo que bate mas não é coração, com algo que sente e não é alma.
E a tua voz lá no fundo,
- Não serves para nada!
Tens razão. Não sirvo para nada. Vão longe os tempos em que o meu sorriso era a alegria no teu olhar, em que os meus dedos se deslocavam suavemente sobre os teus na magia de quem faz da música o derradeiro caminho para a felicidade.
Hoje é tudo ilusão. Sou um vagabundo solitário de mãos vazias e coração aberto.
Não sou músico, como outrora me chamaste, não sou amor, como soletravam os teus lábios na doçura das tardes quentes de Outono. Sou estes dedos que não se cansam de chamar por ti, sou esta música que ecoa no ar sem nunca atingir o seu verdadeiro destino, sou um pássaro de olhos vendados em busca do seu rumo e do seu ninho.
Junto de ti. É aí o meu lugar. Mesmo que digas que não presto e que me queres longe, mesmo que finjas que esqueceste para te entregares nas partituras de outra vida.
Serás sempre aquilo que sou.
Nada mais, nem nada menos que isso. Afinal, nascemos para o que somos.

Isa Mestre