domingo, maio 28, 2006

Feliz Inocência

Eu era feliz e não sabia.
Quando o céu se pintava eternamente de azul e a vida parecia estar em cada uma das estrelas que me acompanhavam pelo mundo, quando os pássaros traziam nos seus bicos a magia de mais um dia, quando eu sorria e não sabia ao certo porque sorria…eu era feliz.
Todas as coisas chamavam por mim e eu sorria…vagabunda, sonhadora, menina… sorria e via nas coisas tristes alguma felicidade, nas pétalas de cada flor a essência do meu próprio ser.
E dizia que a felicidade não se atinge, dizia que ser feliz é sorrir, apenas isso. Na verdade, era apenas isso, sorrir e transportar o mundo na palma da mão.
Por vezes as pessoas ganhavam dimensões dentro de mim, tornavam-se pesadas de mais para que as transportasse nos meus braços, então, levava-as no coração.
E ainda que eu não fosse feliz todos os dias, tinha em mim uma réstia de todos aqueles que pela vida fora conheceram a felicidade. Era um pouco do seu sorriso, da sua gargalhada, do seu ânimo, da sua força de viver.
Na planta da felicidade fui raiz, caule e flor, também dei os meus frutos, os nossos frutos.
Porém, a felicidade esteve perto de mais e quando isso acontece revelamo-nos quase sempre incapazes de agarrá-la, de compreendê-la, de conseguir dizer que somos felizes, sem medo de o fazer.
Mas, é nesses breves instantes que a nossa inocência de meninos que buscam toda a vida um ideal se cobre do nevoeiro das manhãs frias e nos mostra que há dias felizes e horas inesquecíveis.
Hoje sei.
Quando a felicidade parte sabemos que a tivemos nas mãos e deixamo-la escapar, porque fica apenas o seu rasto, a sua marca profunda naquilo que somos, o seu cheiro entranhado nas nossas roupas, a sua tatuagem nos nossos corpos e o desenho inesquecível nos corações.
Então, abrimos a janela e chamamos por ela.
Mas ela não vem, ela nunca vem.
Buscamo-la nos sítios errados quando, afinal, a temos tão perto, abrimos a janela e gritamos, quando basta apenas abrir a porta dos nossos corações e deixá-la entrar.
Hoje, ficou em mim.
Ficou o seu sorriso que é o meu, o sorriso que não esqueci.
Deixou-me ainda as palavras, as que me guiam pelo mundo e são a estrela que me permite alcançar o horizonte. Onde eu não estou as palavras encontram-me, recriam-me, fazem-me mulher, porque as mulheres fazem-se aos poucos.
Por isso, acredito que com tudo aquilo que ficou ainda é possível encontrar dentro de mim a pessoa que sonhou, que sorriu, que lutou e que venceu. Talvez eu ainda seja feliz e continue sem sabê-lo…

Isa Mestre

domingo, maio 07, 2006

Fiquei

Não chorei. Saíste a correr e eu fiquei, perdida, triste, magoada, fiquei apenas mulher sentada à mesa onde conversámos. Fiquei com os sonhos, com os planos do nosso futuro, com as palavras que me deixaste, com a mágoa que semeaste no meu coração.
Permaneci calada enquanto a dor escreveu dentro de mim a nossa história, depois, abri esse livro e li as suas páginas, uma a uma, como quem vê o final se aproximar e deseja que para além daquelas páginas existam outras escondidas algures sobre o imenso dossier da vida. Esperei encontrar as desejadas páginas, busquei-as por toda a parte, toquei infinitas vezes nas palavras escritas esperando que se multiplicassem, que escrevessem novas histórias em que voltássemos a ser os protagonistas, esperei, esperei e morri.
Morri nessas páginas em que o nosso amor foi sepultado. Mas não chorei, não te pedi que voltasses, não te liguei, não te procurei. Fiquei apenas eu, eu e a dor que se sepultou no meu peito.
Quando a manhã se estendeu perante o meu olhar estiquei o braço na esperança de voltar a encontrar-te no espaço vazio, na ténue alegria de poder voltar a tocar-te e a sentir-te, na terna ilusão de voltar a ter-te a meu lado. Procurei-te nos objectos que ainda restaram da tua presença, porque as pessoas partem, os objectos não.
Mas não chorei. Contive as lágrimas e guardei as palavras que poderia ter-te dito nessa manhã de Setembro, guardei-as na caixinha do nosso amor, por isso, se ainda tiveres a chave e quiseres abri-la, fá-lo com cuidado para que não as deixes escapar por entre os teus dedos fugidios e vagabundos.
Quando a noite se aproximou, abri o guarda-fatos e olhei-me ao espelho, imaginei-te olhando-me também e na minha imagem surgiu o teu reflexo, a tua luz, a tua beleza dentro daquilo que sou. E vi-te uma vez mais. Estavas vestido de forma informal, tinhas nos olhos um brilho especial, como duas candeias na escuridão da minha noite. Chamaste-me. Eu fiquei, sentada na minha cama, como uma pobre menina que devaneia constantemente e já não distingue a recordação da realidade.
Chamaste-me e eu fiquei. Ouviste?
Não fingi que já não precisava de ti, mentiria se o dissesse, não disse que não me fazias falta, não afiancei que os meus olhos já não te procuravam na imensidão desta casa vazia. Não! Apenas fiquei. Fiquei porque não tinha o direito de ir e magoar-me uma vez mais, fiquei porque o meu amor é demasiado para tão pouco carinho, fiquei porque o coração me disse que a recordação é a mais bela coisa da vida, fiquei para não construir outros mundos e vê-los ruir diante dos meus olhos.
Enquanto vagueaste como um louco eu fiquei sentada na escuridão do meu quarto e ouvi-me, ouvi a voz que há dentro de mim, a voz que me disse que erguesse a cabeça e guardasse no coração o melhor de nós.
Fi-lo, fá-lo-ei para sempre, mas recuso-me a chorar e a procurar-te por aí quando afinal a recordação do nosso amor é tudo aquilo que resta de ti em mim.
Por isso, saíste e eu fiquei.

Isa Mestre