quarta-feira, setembro 27, 2006

Sozinho

Quantas antes de mim?
Quantos rostos antes do meu? Quantos sorrisos antes dos meus dentinhos a desenhar o teu mundo? Quantos?
E agora...apenas tu, tu e a mulher da rua, sentados no mesmo banco, esperando-me.
Não te olho, caminho de olhos vendados e imagino-te: a sorrir, sempre a sorrir, porque se não sorrisses não serias o mundo que procuro, mas réstia da escuridão que há muito encontrei.
Abro os olhos, porém não te vejo.
Apenas a mulher de rua, a cara magra e o corpo faminto, os olhos que parecem pedir mundos que me escapam por entre os dedos das mãos.
A pele tisnada pelo destino, as mãos sujas da miséria, os olhos gastos da vida.
Hoje, não te vou abraçar.
Só hoje, sentar-me-ei ao lado dessa mulher e falaremos sobre a vida, só hoje aprenderei a permanecer calada quando as nuvens negras ameaçarem o meu céu sempre tão azul, sempre tão profundo, sempre tão limpo.
Depois, enquanto me olhas e me pedes que te beije, procurarei desesperadamente nos bolsos alguns trocos...trocos de dor, trocos de culpa, trocos de quem não suporta ver a fome bater-lhe à porta sem saber que dar-lhe de comer.
Fingirei que não houve mundo depois disso naquela noite.
Fingirei que não me beijaste e não me disseste que me amavas, fingirei que não te apoderaste do meu corpo levando-me algures para outro mundo...
Porque na verdade, eu nunca estive contigo.
O coração permanece onde o olhar se perde.
E eu fiquei, no rosto daquela mulher, nas suas mãos desossadas e frias, ávidas de se aquecerem na fogueira da vida.
Embora os teus bracinhos me guiassem pela rua fora e as tuas palavras tentassem escrever mundos dentro de mim, eu fiquei, e tu sabes que eu fiquei.
Quando jantámos não precisámos de talheres porque comemos o amargo silêncio da dor, lambemos as feridas profundas do coração e ficámos ainda com o sabor do sangue na boca.
Ao amanhecer, senti-me só.
Pétala de rosa abandonada ao vento, espiga de trigo lançada sobre a seara.
De resto, nada mais, apenas o frio da solidão a congelar-me todas as partes do corpo.
Sabes... Pensei em ti.
A solidão dói e tu estiveste sozinho nessa noite, sempre sozinho.

Isa Mestre

quinta-feira, setembro 21, 2006

Longe

Dizes que me amas. Quem ama não esquece e tu esqueceste tudo.
Esqueceste que tenho medo do escuro, que gosto de gelado de baunilha com chantilly, esqueceste que de noite gosto de olhar as estrelas e inventar um nome para cada uma delas, esqueceste que cresci enquanto julgaste construir o teu mundo sem mim...
Hoje voltas.
Julgas que será como fazer uma viagem grande e regressar a casa vitorioso, imaginas que tudo estará igual: os móveis no mesmo lugar de sempre, a tua almofada guardada no roupeiro, as tuas roupas inundadas pelo cheiro a bolor e naftalina, e depois...depois do teu mundo, estarei eu, sentada no sofá esperando ansiosamente o teu abraço.
Dir-me-ás: Cresceste, meu amor. E eu já não te chamarei papá, já não te envolverei nos meus braços de meninice inocente, já não te farei mil e uma perguntas enquanto me sento no teu colo.
Hoje, chamar-te-ei pai (e que saudades eu tinha de chamar-te pai), de dizer-te: pai, pai, pai...como todos os outros, de dizê-lo e ver os teus olhos iluminarem-se como se iluminavam os olhos dos outros,enquanto eu sonhava um dia ver esse mesmo brilho espelhado nos teus.
Hoje, eu apertar-te-ei a mão enquanto tu puxas o meu corpo contra o teu. Sentirei que me queres abraçar, que queres que seja novamente a menina que envolvia os bracinhos no teu pescoço e te pedia gelado de baunilha, mas...aperto-te apenas a mão calejada do trabalho. Afinal, a vida ensinou-me que aos desconhecidos apertamos a mão. Desculpa papá.
Porque cresci, enquanto fugiste para a tua vida eu cresci, e quando olhaste para o teu mundo e julgaste vê-lo construído vieste até mim, para recuperar anos perdidos, para matar as saudades que eu nunca soube que tinhas, para dizer-me que me amas quando eu sempre quis um pai que me amasse, para me pedires que me sente no teu colo quando já tenho filhos esperando ansiosamente sentar-se no meu.
Cresci, pai, cresci! Não vês?
Já não te lembras do dia em que partiste e eu chorei? Chorei. Chorei todos os dias. Chorava sempre que saias.
O tempo é um fantasma que come as recordações, que come o mundo e nos obriga a construir uma nova casa sobre os destroços da que ruiu.
Foi o tempo, papá, foi o tempo - dir-te-ei.
Agora é tarde, tarde para perceberes que eu estou aqui, que sempre estive, precisei do teu amor, do teu cheiro de homem perfumado nos meus lençóis enquanto me contavas histórias de embalar, das tuas mãos de pai dedicado a tocar no meus cabelos e a dizer-me que sou linda.
Perdeste-me. Perdeste o mundo que um dia construiste, lançaste a semente à terra e partiste, deixaste-a crescer sozinha e hoje que queres? Que queres papá? Tolher os frutos da árvore que plantaste? Queres ver se ainda há restos de ti nas suas raízes? Queres saber se ainda te chamo todos os dias na escuridão da noite?
Sim, pai. Tu sabes que sim.
Quem ama não esquece.
Amo-te. Mas o tempo não muda, o amor perdoa mas não esquece.
Nunca mais serei a menina que corria para os teus braços a contar-te todas as novidades. Nunca mais.

Isa Mestre

sábado, setembro 16, 2006

Antídoto

Enquanto seguravas habilmente na máquina, eu sorria, fingia que o meu mundo eras tu. Tu e mais ninguém. Nem as árvores no fundo da fotografia, nem os prédios altos a ameaçar tocar o céu, nem os postes de luz, que sempre nos fizeram lembrar girassóis, nem as nuvens cinzentas que um dia ocultaram o nosso sol.
Eras tu o meu mundo.
Os teus dedinhos inocentes enquanto o flash me incidia nos olhos, a aliança no dedo enquanto julguei ser o teu mundo também.
Agora esquece.
Não há mais mundo. Destruiste algo que demorou anos a construir, foste dinamite no meu sentimento, explosão na minha força de viver.
Esquece apenas.
Finge que não existo, que nunca existi.
Volta para o teu lugar, para os filhos que esperam ansiosamente o pai, para a mulher que sentada junto à janela procura apenas o teu carro...todos os dias, todas as horas, quando parece que nunca mais vens, quando tudo a recorda que já não vens.
Vai, vai agora e não digas mais nada, afinal és apenas destroço do meu mundo de loucura.
Não te amo.
Como posso amar alguém que não conheço, que nunca conheci? Alguém que se diz livre e carrega sobre os seus ombros a pesada tarefa de alimentar uma família, de contar histórias aos meninos antes de adormecer, de colocar o ombro sobre o pescoço da sua mulher e dizer-lhe que está tudo bem.
Foste uma mentira.
Fizeste-me ser palavra do teu pacto de falsidade, ser sentimento nesse coração que nem sabe sentir.
Sinto-me perdida. Porque enquanto a tua família esperava por ti para jantar era na minha cama que dormias, era a minha pele que percorrias, era o meu perfume que cheiravas...
E eu,ainda inocente, sempre a imaginar-nos um dia mais tarde, um dia mais tarde talvez no altar, talvez com muitos filhos, talvez com uma casa maior do que aquela em que habito.
E eu que nunca tive sonhos quis sonhar a teu lado.
Agora vivo numa casa de quatro divisões: um quarto de ódio, outro de saudade, um de amor e um outro de culpa.
Só queria tocar nos cabelos finos desses teus meninos e dizer-lhes que vai ficar tudo bem, que amanhã o papá chegará a horas, que amanhã não haverá trânsito infernal nem trabalho a mais no escritório. Dizer-lhes que não sou vagabunda, que não sou a ladra que sem querer roubou o amor de uma família, eu queria apenas devolver-lhes o ouro, devolver-te áqueles que mais te merecem.
Será que sabes o que é uma família? Uma mãe, um pai, os filhos. Um jantar, um serão juntos a falar de parvoíces, uma tarde a responder às mil e uma perguntas dos garotos, uma manhã a levá-los à escola enquanto eles choram e só querem voltar para casa, um dia a vê-los crescer e fazerem-se homens perante o teu olhar.
É isso.
E foi em tudo isto que falhaste, que desonraste aqueles que te deram alento tantas vezes, que te ajudaram a erguer a cabeça e seguir em frente.
Falhaste.
Tu falhaste e eu falhei.
Onde estava o teu mundo nos momentos em que sorrias, em que me abraçavas , em que me beijavas? Onde? Escondido por detrás da cortina do meu quarto? Fechado no guarda-fatos do teu coração? Envergonhado atrás da porta enquanto eu te dizia palavras bonitas?
Onde estava o teu amor quando te disse que queria casar contigo, ter filhos a teu lado, onde estava?
Morreu?
Não. O amor nunca morre. Mas adoece...
Por isso, hoje, não digas mais nada, não passes os teus dedos sobre os meus lábios dizendo-me que me amas, não combines a hora a que nos encontramos amanhã.
Se me respeitas, faz apenas isto: abre o armário do teu coração e encontra nele o medicamento para curar esse amor, encontra o antídoto para este veneno e aprende a renascer ao lado da tua família. Ouviste? Tua.
Não é nossa, é tua.
Tu, ela e eles.
Para ti:Sê feliz.
Para eles: desculpem.

Isa Mestre

quinta-feira, setembro 07, 2006

Fico

Porque vieste se sabes que vou? Se sabes que a vida são partidas e chegadas.
Porquê? Vieste para dizer-me "fica", ou vais continuar a calar esse grito que te atormenta? Vais continuar a fingir que está tudo bem? Que não sentes, que nunca sentes...?
Eu já sei que é tudo mentira.
Já vi o que há para além do homem arranjado que usa perfumes caros e se barbeia todos os dias, eu já vi a luz que te percorre todos os poros do corpo, eu já vi que me amas.
Não precisas acender o cigarro e dizer-me que te apeteceu falar, já não precisas coçar a orelha timidamente enquanto bates suavemente com o pé no chão.
Estás nervoso, eu sei.
Revejo-me. Quantas vezes estive assim? Quantas vezes fui a menina apaixonada que tremia, que esbracejava, que sorria com medo de sorrir, que ajeitava o cabelo e perguntava ao coração quantas mais vezes bateria ele assim...
Não te preocupes, já não precisas de dizer-me que sou importante para ti, que as nossas birrinhas foram apenas loucuras de dois jovens em busca de um lugar no mundo, já não precisas atirar o cigarro pela janela fora e fingir que não se passa nada.
Eu sei, eu sempre soube.
Mesmo quando disseste que me odiavas eu sabia que naquela palavra estava a maior expressão de amor, quando foste embora eu soube que voltarias, quando choraste eu soube que sorririas, quando me olhaste eu soube que jamais poderias olhar outra mulher assim.
O amor sente-se, conhece-se, aprende-se.
Sentas-te outra vez, ainda começas a frase,
- Sabes...
Vamos, diz, diz lá o que anda preso nesse coração, esse sentimento tão lindo que te fez vir até aqui, que te fez perder dois autocarros e estar diante de mim com esse olhar brilhante.
Não consegues terminar a frase, o amor retira-nos as palavras, torna-nos tolos em todos os momentos, mata-nos a naturalidade.
Eu sei tudo.
Sei que acordaste e pensaste que era mulher para ti, sei que te olhaste ao espelho e ajeitaste os caracóis que eu tanto gosto, sei que te fixaste na minha fotografia e repetiste milhares de vezes o que irias dizer-me.
E agora estás sem palavras.
Não te preocupes querido, o silêncio segredou-me ao ouvido o que querias dizer-me.
Eu sempre soube.
Mas porquê apenas hoje? Hoje que vou, que nada me pode impedir, hoje que olho como uma louca para os bilhetes de avião enquanto me dizes que me amas.
Eu ia em busca do meu sonho...quem julgas que és? Já não sou a menina que deixaria tudo e correria para os teus braços...
A vida ensina, a vida castiga, magoa, mas ensina.
Perguntas-me se acredito no amor. Pergunta tola. Já sabes a resposta, porque perguntas? Para encher o ar de palavras? Para te sentires um pouco melhor enquanto eu vou ao quarto e carrego nas mãos as minhas duas malas? Para teres a certeza que essa pergunta há-de ecoar na minha alma até ao final dos meus dias?
- Claro que acredito.
E tu sorris.
Fica, fica, fica. Pareces um cachorrinho à volta dos donos, pedindo ossinhos e carinho. Também é isso que queres. Ossinhos e carinho.
Talvez seja também isso que quero, ter-te só para mim, dormir a teu lado e chamar-te cabeçudo na manhã seguinte, perguntar-te tudo aquilo que ainda me atormenta e ouvir-te carinhosamente a desfazer todas as minhas dúvidas.
Que sentido faria partir? Sobrevoar o mar e atingir as estrelas? Porquê, para quê? Se tu és o meu mar em noites de tempestade, se és a minha estrela quando o mundo parece mergulhado na escuridão, se és um único sentimento por entre tanta gente que nunca soube sentir.
- Amo-te,
dizes.
Cala-te. Essa palavra está gasta, é bonita mas está gasta. Guarda-a dentro de ti e usa-a um dia mais tarde, um dia em que te sentes à lareira e contes aos teus netinhos a nossa história. Aí dir-lhe-ás: Como a amava...
E a palavra será novamente bela, ganhará luz, voltará a transportar para dentro de mim algo que me peça vida.
Por agora, fica apenas. Afinal eu já sei tudo, sempre soube.
Não vou, fico contigo, sempre quis ficar, sempre quis saber que te perdia para finalmente te encontrar, para te ouvir dizer que te faço falta, que sou especial, que não posso ir....Eu sempre quis ver-te chorar por mim. O amor é também vingança, ou não fossem todas as vezes que chorei por ti.
Mas eu fico, fico e amo-te.

Isa Mestre