sábado, dezembro 15, 2007

Deixa-me sorrir-te

Deixa-me ser o teu olhar para percorrer todos os sonhos e pousar as tuas asas nos meus braços, deixa-me ser a tua voz para ecoar pela minha casa enquanto me chamas com palavras doces e gestos infantis, deixa-me ser as tuas mãos quando está frio e se entrelaçam nas minhas num jogo de ternura.
Deixa-me ser aquilo que és só para poder voltar a ter-te do meu lado.
Caminho pela casa e sento-me no chão, como se diante de mim ainda se estendessem os teus olhos ternos, a tua doçura e a delicadeza de quem segurava sempre um livro entre as mãos, um livro chamado tempo, uma história chamada vida.
Hoje, por mais páginas que passe jamais conseguirei encontrar o parágrafo em que os nossos lábios se tocaram, a frase em que os nossos corpos se abraçaram, a palavra em que os nossos olhos se contemplaram quase a desejar ser felizes.
Talvez não existam páginas repetidas no livro da vida, talvez cada história seja única e os meus dedos estejam apenas cansados de procurar…talvez sorria às estrelas, agradecendo o dia em que me olhaste e me fizeste sentir pérola num mar de sonhos ancorados.
Não te chamo mais. Ainda que quisesse não saberia como fazê-lo. Conheço-te os traços do rosto, as rugas das mãos, a profundidade do olhar e a sensibilidade do toque, mas desconheço-te o nome.
Quem sabe um dia tento uma palavra vulgar, um nome gasto, mas hoje não, hoje és demasiado especial para perguntar-te algo tão banal como um amontoado de letras que se acredita poder definir alguém.
Por agora, fico apenas no silêncio esperando um ruído. Passos. Vozes. Campainha. Tu?
Não desejo mais nada, não desejo mais ninguém.
Deixa-me ser os teus pés para te guiar até mim…

Isa Mestre

sábado, dezembro 01, 2007

Palavra em Branco

Há pessoas que ainda antes de sorrir já nos pertencem.
Já lhe conhecemos a expressão dos olhos e os contornos suaves dos lábios, os caracóis rebeldes e a calma valsa das mãos sobre a mesa.
- O teu trabalho é escrever-me,
Disseste-me, então.
E eu, que até aquele dia queria ser escritora, desisti de colocar-te em palavras, por ter a perfeita consciência que as coisas mais belas da vida serão sempre impossíveis de escrever.
Olhei-te até ao sorriso, até à exaustão (se é que os meus olhos se cansam de te olhar)…
E por momentos, existiu entre nós o silêncio da distância entre o pintor e a sua tela.
Apenas a tua voz,
- Escreve-me.
Como as telas diziam a Picasso,
- Pinta-me.
E eu a ser incapaz de encontrar um adjectivo decente, um adjectivo que te faça sorrir e pensar o quão tola sou, enquanto me pedes que rabisque um papel.
Há mulheres a quem pagas por horas de puro prazer, pelo desejo de carne contra carne. A mim, contratas-me para que te escreva.
E serei eu mais digna que aquela que se despe diante de ti, em outras ocasiões? Será que não me dispo também, em palavras profundas e gestos escondidos?
Estou nua e nem me consegues apreciar.
Estás demasiado preocupado com os vocábulos que procuro para te adornar a alma, para te fazer mais homem.
Recorda-te dos reis que mandavam pintar retratos. Tu mandas-me escrever-te.
Despes-me. Roubas-me a alma. Tentas ensinar-me o que é o amor, quando eu nunca conseguirei escrevê-lo, porque nunca conseguirei escrever-te a ti. És o amor. E o amor é uma palavra em branco.

Isa Mestre