sexta-feira, outubro 19, 2007

Pedaços de Mim

O teu cheiro ainda na minha almofada. Passados tantos anos. O teu cheiro ainda na minha almofada. Como se tivesses acabado de acordar de uma folga de verão, como se tivesses acabado de abrir os teus olhos de menino, dizendo-me ainda que me amas.
E, de repente, é tudo mentira. Tu já não estás, os teus lábios já não me dizem de cor as palavras que o coração anseia ouvir. Procuro-te nos corredores gelados da minha solidão e encontro-te na cama de outra, enquanto lhe chamas meu amor, afagando-lhe os cabelos contra o peito, enquanto lhe dizes que a amas, como outrora me disseste, enquanto esqueces que um dia foi nessa cama que estiveste deitado comigo, de barriga voltada para o sonho de casarmos e ter filhos. E eu a pensar que palhaço te tornaste, eu a pensar como queria que fosse a mim que abraçasses, que fosse o meu nome que dissesses todos os dias, eu a pensar como eram felizes os dias em que o meu nome era tudo, em que o teu nome era um mundo a girar em volta do meu corpo.
Eu a chamar-te tolo, mas, no mais profundo de mim, a amar-te como desde o primeiro dia em que me apaixonei, a amar-te ainda como naquele olhar em que me pediste uma caneta, a amar-te ainda como no calor do nosso primeiro beijo, a amar-te ainda como se nenhum outro pudesse preencher o teu lugar.
E, no entanto, todos nós a sabermos que é mentira, todos convictos que um dia destes haverá outro coração a bater em compasso, outro olhar a devorar-me por dentro, outro sorriso a ensinar-me a sorrir.
E tu sabes, tu hás-de saber sempre disto. Por isso, ouve bem esta frase, porque quando nos falta coragem para falar, escrevemos.
Existirás em tudo.
E tu sabes que sim. Existirás na saliva dos beijos que trocarmos, nas promessas que lhes fizer, jurando-lhes amor eterno, existirás nos gemidos de prazer, enquanto eles se julgam poderosos, existirás nas verdades e nas mentiras, nas dúvidas e nas certezas. E quando o meu corpo pousar sobre o deles, a minha alma há-de procurar na tua recordação a certeza de jamais poder amar outro homem como te amei a ti.
Mas, mesmo assim, fingirei. Hei-de passar toda a minha vida a fingir.
Fingir que esqueci, que as horas passadas debaixo do cobertor dos sonhos foram apenas espigas levadas pelo vento, fingir que quando o teu olhar se cruza com o meu não há nenhuma voz que me diga baixinho,
- amo-te,
Como repito para o espelho, acreditando que me vês,
- amo-te,
Como me disseste à porta do elevador num dia de Outono,
- amo-te,
Como quando partiste e me deixaste com os cacos de uma palavra desfeita a fugir-me por entre os dedos das mãos.
Sabes o que dói mais? É não saber como colar as peças partidas.

Isa Mestre

quinta-feira, outubro 11, 2007

Choveu dentro de mim

Choveu tanto nessa noite. Choveu demasiado nessa noite. Talvez, se não tivesse chovido tanto, as gotas do teu coração não inundassem o meu como que impregnando-se em cada parte do meu corpo, como que sendo minhas a casa instante.
Hoje, quero sacudir as roupas e pingo por todos os lados. Dizem-me que cheiro a ti, que tenho ainda o teu perfume preso no meu pescoço, a tua boca suavemente encostada ao meu ouvido dizendo-me que me ama. Quero fugir. Corro, corro. Mas para onde ir? Se estás em cada momento, se os teus lábios me perseguem como se me beijassem levemente os ombros depois de fazermos amor.
Imagino-te de pés descalços e camisa encharcada a percorrer-me a casa, a procurar duas chávenas de café bem quentinhas para me acolheres junto ao leito, para me calares esta voz que me diz que não posso ser tua, quando já te pertenço.
E ele lá fora. Ao frio, à chuva, ao vento. Ele que foi buscar os miúdos à escola e lhes preparou o jantar, ele que ligou vezes infinitas, procurando a mulher com quem casou. Procurando quem já não sou.
De um lado para o outro, caminha freneticamente pela rua. Imagino as vezes que terá ligado para o escritório, para a minha mãe, para a minha irmã…imagino as imagens que lhe atravessam a mente e quero voltar. Mas tu estás aqui, como lama presa nos meus sapatos, tu permaneces imóvel e apaixonado, risonho e astuto. E pela primeira vez na vida, tenho a certeza de nunca mais poder voltar a amá-lo como te amo a ti.
Fico calada. As minhas palavras denunciariam a paixão e afinal quem sou eu para sonhar? Eu que tenho os sapatos sujos de lama, que estou submersa na infidelidade de quem usa aliança no dedo e tem o coração amarrado pelos traços do destino.
Aqui, na tua cama, deixo de ser a mãe, a esposa que faz o jantar, que passa a ferro e lava a loiça, deixo de ser a menina de sorriso aberto que casou com o arquitecto bem sucedido, para ser apenas tua. Somente tua.
E, por vezes, o que parece tão pouco significa tanto dentro de nós.
Fico mais um pouco. Vou fingir que esqueço que os miúdos chamam por mim, vou fingir que sou feliz com a vida que tenho lá fora. E quando sair deste quarto, vou deixar-te um bilhete na mesa-de-cabeceira. O que dirá não sei. O que farás depois disso apenas tu poderás saber.

Isa Mestre