quarta-feira, dezembro 27, 2006

Duas horas

Posso ir embora quando quiseres, basta uma palavra, um gesto, o teu indicador de encontro à porta que nos separa do mundo lá fora.
Podes mandar-me embora como o fazes com o cão quando chega a casa com as patas sujas de lama e o focinho a latejar. Afinal, também eu estou suja, trago comigo a sujidade de uma vida que não me permite ser mais do que sou, trago comigo a vergonha de um mundo que não me pertence mas que enfrento todos os dias.
Tu telefonaste e eu vim. Já nos conhecemos. Não é a primeira vez que os teus olhares se cruzam com o vazio da minha existência, que o teu desejo se cruza nos caminhos da minha necessidade.
Apetece-me dizer-te que tens uns olhos lindos que parecem sempre querer abraçar o mundo, apetece-me dizer-te que acredito nos sentimentos que tens no peito, que gosto da forma como dispões os livros nas prateleiras, que aprecio a forma como me olhas…
Mas por vezes o silêncio fala tanto, que prefiro permanecer calada no calor que nos acolhe.
Caminho de olhos vendados pelo teu mundo, com passos incertos vou marcando em ti aquilo que sou.
Vimo-nos duas vezes. Mas eu bem sei que não és como todos os outros.
Enquanto eles me pedem desejo e me corrompem a alma, tu olhas-me, sorris-me, dás-me a dignidade que julguei perdida nas avenidas e rotundas da vida.
Não queres minutos de prazer, não queres gemidos nem uma mulher que te faça sentir alguém.
Quando me telefonas eu sei que queres apenas companhia. O teu sorriso e o meu junto da lareira, o teu olhar perdido que me conta todas as histórias do mundo, a dignidade de quem sonha poder enganar o destino.
Sou parte de ti, metade dessa solidão que te assola o peito, metade desta solidão que cresceu comigo e vive aqui, do outro lado do mundo. No lugar onde não me vendo para conseguir dinheiro fácil ao final do mês, onde não finjo prazer para enganar quem me paga, onde não me sinto suja como se chafurdasse na lama um dia inteiro.
Queres oferecer-me dignidade, eu sei, os teus olhos são o reflexo do que te vai na alma.
- Podes tomar banho, se quiseres,
Dizes tu.
Eu sei, dar-me-ias o mundo, mas a sujidade que tenho dentro do peito permaneceria exactamente igual.
Afinal, eu seria sempre a mulher que chamaste por algumas horas, o pedaço de prazer, desejo e loucura que os outros vêem em mim.
Não podes ignorar a verdade.
Sou uma mulher suja. Ouviste?
Não há nada que possa mudá-lo. Nem a tua voz a consolar-me o choro, nem o teu sorriso a envergonhar-me as lágrimas, nem o teu mundo repleto de magia a fazer face à minha escuridão…
Daqui a pouco vou embora. Pagaste por duas horas de companhia, duas horas de mágoa, duas horas roubadas à solidão. Faltam apenas dois minutos. O teu tempo acabou, agora há quem chame do outro lado, quem não queira companhia, quem se sinta vazio e queira roubar-me o corpo e a alma.
Acabou. Mas ao menos tentaste.

Isa Mestre

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Falso

Sim.
Hoje, não há nada que me impeça de sorrir-te. Esqueci os lamentos, as tristezas, as vezes em que me afastei para sacudir a dor do resguardo profundo da alma.
Mas hoje, prometo que te sorrio, do início ao fim, como no teatro, desde o abrir até ao cerrar das cortinas, desde o despontar do sol até ao nascer da lua que se estende sobre as nossas cabeças.
Não quero saber se amanhã chove, se amanhã o mundo chora por não saber quem somos…não, não quero!
Sou o presente, aquilo que vivo e o que sinto. Sou a tua voz quando estás exausto de gritar, sou o teu sorriso quando os lábios se recusam a sorrir, sou o teu sol quando as nuvens negras ameaçam o mundo.
Seguimos vagabundos pelas avenidas da nossa vida, conduzes loucamente por entre as fileiras intermináveis e eu sorrio, não porque ache piada à imprudência do teu acto, mas porque o teu simples olhar seria razão mais do que suficiente para o meu mundo se abrir a teu lado, tal como um baralho de cartas na mão de um profissional.
A música a sair-te da alma, a inundar-te o corpo repleto de energia…
Penso.
Porquê eu? Porquê tu? Porquê nós?
Porquê? Se enquanto cantas estridentemente eu apenas quero dizer-te que odeio música, se enquanto exuberas de alegria eu apenas quero mostrar-te que o meu mundo é tristeza e silêncio…
Eu já te tinha dito. Não vou mentir mais, estou cansada de mentir.
- Não sou pessoa para ti,
A minha voz a ecoar na amálgama de sons do teu carro, a minha voz a tornar-se cada vez maior, a minha voz a elevar-se sobre a música…e por fim, apenas a minha voz.
(Ouviste?)
- Não sou pessoa para ti.
Desligas a música.
Sinto-me importante. Como uma actriz num palco de sonhos que não é meu, como uma ladra rodeada de seguranças que querem saber a todo o custo porque roubo.
De novo a tua voz a ecoar no silêncio virgem do interior do teu carro,
- Porquê? ,
Quero dizer-te que somos muito diferentes, que nunca será possível amar assim, quero dizer-te que adoro o teu jeito de sorrir, a forma como me abraças, o calor com que te entregas ao mundo. Mas não te imagino meu. Não. Nunca poderia fazê-lo.
Sabes…a alma não se pode propor a enganos que o coração não vende.
- Não te amo,
As minhas palavras levam-te a convicção com que me embalaste por este mundo fora, sinto-me ridícula, como se com um sopro destruísse em breves instantes o castelo de cartas que demorou anos a edificar.
Mas, não posso mentir-te, não posso mentir-me.
Bem sei que dói, que sou cobarde porque insisto em correr atrás de algo que me foge das mãos, que procura luz quando eu vivo na escuridão deste sentimento que me acorrenta.
Pudesse eu amar-te como o amo e faria de ti o homem mais feliz do mundo, ouviria contigo a música das nossas vidas e gritaria como uma louca pelas ruas da cidade… Agora, apenas te posso dizer: Sim.
Sim, a uma amizade que não é amor, a um sorriso que não é de quem ama, mas de quem acarinha. Por isso, hoje, não há nada que me impeça de sorrir-te, nem mesmo os monstros do amor verdadeiro a assolar-me a consciência de um amor fingido.

Isa Mestre

sexta-feira, dezembro 01, 2006

A minha amizade nas mãos do mundo

O teu sorriso quase a fingir que estás feliz, o teu sorriso que mesmo quando a alegria não mora do lado de dentro consegue ser sempre tão puro e sincero. Porque apenas a simplicidade habita nesse mundo.
Por momentos, esqueço as lágrimas que tantas vezes desenharam figuras pelo teu rosto, o sofrimento que vive aí nesse cantinho escondido do peito.
Enquanto sorris esqueço tudo. A fome, o frio, o medo, esqueço os corações que matam lá fora julgando poder vencer o mundo.
Depois, na minha voz sumida,
- Como estás? ,
E tu quase sem saber que me dizer, com as lágrimas a empurrarem-se umas às outras e a ameaçar saltar para o meu mundo.
Beijo-te a face.
Sabes…por vezes é tão difícil fazê-lo, mostrar que estou aqui e és alguém dentro de mim.
Mas eu sei que entenderás, porque o meu beijo é o,
- Conta comigo,
Que os meus lábios jamais conseguirão pronunciar.
Depois, vou embora, levo-te no pensamento, para onde quer que vá, percorra quantos mundos percorrer. Porque hei-de sempre recordar-me, que por mais tristeza que exista , há-de existir sempre um sorriso sincero e terno, um sorriso que vem de dentro e se deposita no meu coração.
Porque apenas tu te entregas ao mundo, naquilo que és, na bondade que te habita, na humildade que te faz, na menina que já é imensamente mulher.
Não te peço que esqueças as tristezas, eu bem sei que é utopia e mentira!
Porém, lembra-te que sem tristeza não haveria alegria, que sem ódio não existiria amor, que sem corações maus seria impossível distingui-los dos bons.
Os homens fazem-se aos poucos, conhecem-se e constroem-se, tal como casas.
Por isso, lembra-te sempre que te cabe a ti escolher os bons tijolos, aqueles que não ruirão à primeira rajada de vento, os que permanecerão firmes quando tudo o resto cair.
Esses tijolos serão o teu sorriso quando a vontade de chorar for maior.
Lembra-te que toda a casa tem bons e maus tijolos, e que sem uns os outros não existiriam.
Sorri, chora, grita, luta, cai, ergue-te e vence.
Mas, faz da vida o teu campo, semeia os teus valores e encarrega-te de vê-los crescer, tal como uma semente que brota sob o olhar atento da mãe.
O meu coração estará sempre aberto para o teu sorriso nobre, para a gargalhada sincera, para essa amizade tão grande que não cabe nas mãos do mundo.

Isa Mestre