sábado, setembro 16, 2006

Antídoto

Enquanto seguravas habilmente na máquina, eu sorria, fingia que o meu mundo eras tu. Tu e mais ninguém. Nem as árvores no fundo da fotografia, nem os prédios altos a ameaçar tocar o céu, nem os postes de luz, que sempre nos fizeram lembrar girassóis, nem as nuvens cinzentas que um dia ocultaram o nosso sol.
Eras tu o meu mundo.
Os teus dedinhos inocentes enquanto o flash me incidia nos olhos, a aliança no dedo enquanto julguei ser o teu mundo também.
Agora esquece.
Não há mais mundo. Destruiste algo que demorou anos a construir, foste dinamite no meu sentimento, explosão na minha força de viver.
Esquece apenas.
Finge que não existo, que nunca existi.
Volta para o teu lugar, para os filhos que esperam ansiosamente o pai, para a mulher que sentada junto à janela procura apenas o teu carro...todos os dias, todas as horas, quando parece que nunca mais vens, quando tudo a recorda que já não vens.
Vai, vai agora e não digas mais nada, afinal és apenas destroço do meu mundo de loucura.
Não te amo.
Como posso amar alguém que não conheço, que nunca conheci? Alguém que se diz livre e carrega sobre os seus ombros a pesada tarefa de alimentar uma família, de contar histórias aos meninos antes de adormecer, de colocar o ombro sobre o pescoço da sua mulher e dizer-lhe que está tudo bem.
Foste uma mentira.
Fizeste-me ser palavra do teu pacto de falsidade, ser sentimento nesse coração que nem sabe sentir.
Sinto-me perdida. Porque enquanto a tua família esperava por ti para jantar era na minha cama que dormias, era a minha pele que percorrias, era o meu perfume que cheiravas...
E eu,ainda inocente, sempre a imaginar-nos um dia mais tarde, um dia mais tarde talvez no altar, talvez com muitos filhos, talvez com uma casa maior do que aquela em que habito.
E eu que nunca tive sonhos quis sonhar a teu lado.
Agora vivo numa casa de quatro divisões: um quarto de ódio, outro de saudade, um de amor e um outro de culpa.
Só queria tocar nos cabelos finos desses teus meninos e dizer-lhes que vai ficar tudo bem, que amanhã o papá chegará a horas, que amanhã não haverá trânsito infernal nem trabalho a mais no escritório. Dizer-lhes que não sou vagabunda, que não sou a ladra que sem querer roubou o amor de uma família, eu queria apenas devolver-lhes o ouro, devolver-te áqueles que mais te merecem.
Será que sabes o que é uma família? Uma mãe, um pai, os filhos. Um jantar, um serão juntos a falar de parvoíces, uma tarde a responder às mil e uma perguntas dos garotos, uma manhã a levá-los à escola enquanto eles choram e só querem voltar para casa, um dia a vê-los crescer e fazerem-se homens perante o teu olhar.
É isso.
E foi em tudo isto que falhaste, que desonraste aqueles que te deram alento tantas vezes, que te ajudaram a erguer a cabeça e seguir em frente.
Falhaste.
Tu falhaste e eu falhei.
Onde estava o teu mundo nos momentos em que sorrias, em que me abraçavas , em que me beijavas? Onde? Escondido por detrás da cortina do meu quarto? Fechado no guarda-fatos do teu coração? Envergonhado atrás da porta enquanto eu te dizia palavras bonitas?
Onde estava o teu amor quando te disse que queria casar contigo, ter filhos a teu lado, onde estava?
Morreu?
Não. O amor nunca morre. Mas adoece...
Por isso, hoje, não digas mais nada, não passes os teus dedos sobre os meus lábios dizendo-me que me amas, não combines a hora a que nos encontramos amanhã.
Se me respeitas, faz apenas isto: abre o armário do teu coração e encontra nele o medicamento para curar esse amor, encontra o antídoto para este veneno e aprende a renascer ao lado da tua família. Ouviste? Tua.
Não é nossa, é tua.
Tu, ela e eles.
Para ti:Sê feliz.
Para eles: desculpem.

Isa Mestre

1 comentário:

João Teago Figueiredo disse...

Enquanto leio o que escreves sinto que vale a pena acreditar no futuro da língua. A língua, a pátria que mais do que só do Pessoa também é nossa, a língua que é o próprio país que a destroça, o próprio país que a quer esquecer, e a sua condição a contamina, e no seu dia a dia a assassina. Assassinada pelos "póssamos" ecoados nas rua, nas esquinas de plebe, nas avenidas de burguês, pelos Pessoas que ninguém conhece nem reconhece. Depois, depois das desilusões, das monções e dos sismos sem esperança surgem textos como os teus que me fazem acreditar na minha pátria. A pátria de onde brotam Lobos Antunes ou Vascos Graças Mouras como outros. E digo:

Para eles: Obrigado
Para ti: Obrigado. Estarei sempre aqui.

João Teago Figueiredo