quinta-feira, setembro 21, 2006

Longe

Dizes que me amas. Quem ama não esquece e tu esqueceste tudo.
Esqueceste que tenho medo do escuro, que gosto de gelado de baunilha com chantilly, esqueceste que de noite gosto de olhar as estrelas e inventar um nome para cada uma delas, esqueceste que cresci enquanto julgaste construir o teu mundo sem mim...
Hoje voltas.
Julgas que será como fazer uma viagem grande e regressar a casa vitorioso, imaginas que tudo estará igual: os móveis no mesmo lugar de sempre, a tua almofada guardada no roupeiro, as tuas roupas inundadas pelo cheiro a bolor e naftalina, e depois...depois do teu mundo, estarei eu, sentada no sofá esperando ansiosamente o teu abraço.
Dir-me-ás: Cresceste, meu amor. E eu já não te chamarei papá, já não te envolverei nos meus braços de meninice inocente, já não te farei mil e uma perguntas enquanto me sento no teu colo.
Hoje, chamar-te-ei pai (e que saudades eu tinha de chamar-te pai), de dizer-te: pai, pai, pai...como todos os outros, de dizê-lo e ver os teus olhos iluminarem-se como se iluminavam os olhos dos outros,enquanto eu sonhava um dia ver esse mesmo brilho espelhado nos teus.
Hoje, eu apertar-te-ei a mão enquanto tu puxas o meu corpo contra o teu. Sentirei que me queres abraçar, que queres que seja novamente a menina que envolvia os bracinhos no teu pescoço e te pedia gelado de baunilha, mas...aperto-te apenas a mão calejada do trabalho. Afinal, a vida ensinou-me que aos desconhecidos apertamos a mão. Desculpa papá.
Porque cresci, enquanto fugiste para a tua vida eu cresci, e quando olhaste para o teu mundo e julgaste vê-lo construído vieste até mim, para recuperar anos perdidos, para matar as saudades que eu nunca soube que tinhas, para dizer-me que me amas quando eu sempre quis um pai que me amasse, para me pedires que me sente no teu colo quando já tenho filhos esperando ansiosamente sentar-se no meu.
Cresci, pai, cresci! Não vês?
Já não te lembras do dia em que partiste e eu chorei? Chorei. Chorei todos os dias. Chorava sempre que saias.
O tempo é um fantasma que come as recordações, que come o mundo e nos obriga a construir uma nova casa sobre os destroços da que ruiu.
Foi o tempo, papá, foi o tempo - dir-te-ei.
Agora é tarde, tarde para perceberes que eu estou aqui, que sempre estive, precisei do teu amor, do teu cheiro de homem perfumado nos meus lençóis enquanto me contavas histórias de embalar, das tuas mãos de pai dedicado a tocar no meus cabelos e a dizer-me que sou linda.
Perdeste-me. Perdeste o mundo que um dia construiste, lançaste a semente à terra e partiste, deixaste-a crescer sozinha e hoje que queres? Que queres papá? Tolher os frutos da árvore que plantaste? Queres ver se ainda há restos de ti nas suas raízes? Queres saber se ainda te chamo todos os dias na escuridão da noite?
Sim, pai. Tu sabes que sim.
Quem ama não esquece.
Amo-te. Mas o tempo não muda, o amor perdoa mas não esquece.
Nunca mais serei a menina que corria para os teus braços a contar-te todas as novidades. Nunca mais.

Isa Mestre

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